José Luís Salles Franco (1960-2012)
I
Migram as aves ao sentirem frio
Migram os homens ao sentirem-se sós
Migram as árvores para outra vida
As folhas, as flores, os frutos.
Mundos se liquefazem
E as águas semeiam solidões.
O lago, o rio, o mar, o oceano.
O humano e seus desvios –
O avesso do tempo,
a finitude do voo.
As constelações: as infinitas distâncias
A saudade a evocar gestos, rostos,
ruas, passos, beijos, barcos,
a esquecida infância.
II
Tudo soa falso
As palavras,
O silêncio de Beethoven,
As valsas de Strauss.
A dança das vozes rodopia
Os fantasmas, mais uma vez, se cumprimentam.
A infância desaparece no oco da casa.
O tempo fecha portas e janelas.
Não há mais como voltar.
A fotografia nos eterniza para a morte.
Os moinhos não são de vento.
O jogo de amarelinha,
Os caminhos que se bifurcam.
Nada nem ninguém nos salva.
III
Um monstro me habita,
de muitas faces
e múltiplos disfarces.
Nada me salva da sua voracidade
Rasga-me entre dentes
A febre das palavras.
Os desvios do outro:
o estranho Hyde a me mirar.
............................................
Palavras nos sentenciam.
Falso ou verdadeiro,
nenhuma das alternativas.
O monstro me devora,
O labirinto é infinito.
Lírico I
Cidades desaparecem na íris de minhas retinas fatigadas
O cupim tempo, pouco a pouco, as apaga
Ninguém mais recorda a velha topografia
marcas inseridas no corpo e traídas ao dobrar esquinas.
Com qual medusa me deparo? Petrificado desapareço.
Perco-me nos subterrâneos esquecidos,
sem vias de acesso, os passos não deixam rastros.
Quais fantasmas assistem à última sessão nas ruínas da infância?
Grafito no branco das paredes uma gramática que se desmancha.
No alto do sobrado as lembranças de donzelas
A cidade é de pedra, dizia o cego a seu filho.
A força da grana que ergue e destrói coisas belas.
De noite eu rondo a cidade a nos procurar
Canções que ecoam.
Lírico II
Eu, blade runner, já não capturo andróides
Caço alguém que nunca encontro
Na maré do congestionamento
Miríades de imagens nos atravessam
Corporificadas em pedra e aço
Memórias se transformam em ruínas
Nada permanece
Esta é a cidade do esquecimento
Mesmo assim, recordo
Subtraio uma partícula do tempo
Que a todo instante retorna
Um déjà vu jamais revelado
Uma tatuagem se rasga e sangra
Não há rotas a serem seguidas
Stop uma estação go do inferno
Atropelamento e fuga
Nenhuma cidade nos espera
***
A Cidade é uma máscara mortuária
Repleta de janelas cheias de solidão
Ninguém habita o poeta
Nem o cacto, nem o bicho, nem o homem
A eternidade o assalta: o mundo o chama
O firmamento é inútil
As ruínas apagam os passos de quem por elas passou
Nenhum verso salva o poeta.
Coité, 30.05.12, durante a exibição de O poeta do castelo, de Joaquim Pedro de Andrade.