quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

                                    

CRONOCENTRISMO E CRÍTICA LITERÁRIA


 


Curioso como os detratores do eurocentrismo e do logocentrismo e do falocentrismo deixam passar em silêncio uma categoria que, a um observador desinteressado, não deveria ser motivo de menor escândalo do que as primeiras: o cronocentrismo, a mais ou menos consciente transformação do tempo (ou de um certo momento do tempo) em coisa, em algo cuja essência pode ser definida a exemplo de uma cadeira, em algo que pode ser estudado como um bicho de laboratório, alçando-se daí a causa de fenômenos, a critério de julgamento, a móbil de ações. Nunca encontrei quem hoje defendesse a sério essa posição tal qual; creio, entretanto, que nem por isso ela está menos viva, e viva exatamente porque anônima e difusa, quer como pressuposição tácita entre palestrantes e suas audiências, quer como o sentimento secreto unindo autor e leitor.

O cronocentrismo pode, claro, manifestar-se em meios intelectuais restritos como fetichização de um período pretérito (e uma Idade Média de cartolina em alguns círculos católicos é o primeiro exemplo que me vem à mente), mas, para a massa dos educados lato sensu, ele aparece como aquilo que Jacques Maritain chamou de cronolatria, o uso dos in e dos outs das revistas de moda no campo das idéias, seguindo-se daí a fatal legitimação do presente e a transformação do conceito em voga ontem em algo tão risível e tão absurdo quanto uma anágua ou um gorrinho de melindrosa. É a adoração narcísica da própria época — essa época não se definindo por mais do que pelo espaço entre dois derniers cris. Talvez por isso os defensores do multi- a qualquer preço sejam de uma inconsciência tão complacente quanto ao cronocentrismo: é ele que os legitima; por trás da poeira levantada pela caravana de palavras vagas, difícil é escutar, no seu contexto e nos seus próprios termos, o discurso dos homens sobre as mulheres na longa era de trevas anterior ao advento de Simone de Beauvoir ou o que os padres da Igreja entendiam realmente por pecado da carne. Para “dar voz” aos excluídos (usando a metáfora de que eles mesmos se servem), é preciso abafar a dos seus supostos algozes.

Mas tudo isso é coisa por demais sabida.

Interessa-me aqui dar um exemplo de como o cronocentrismo realiza-se em um domínio preciso, a literatura, e mais especificamente na crítica literária — esse altar vazio a qualquer ídolo vagabundo, bolsa de valores abjeta em que um rumor certo plantado no lugar certo decide o esquecimento de alguns e o triunfo de outros. Esta última metáfora, já aviso, peguei emprestado de Paul Valéry, e é exatamente o caso dele que vou examinar, não sendo um dos mais trágicos, mas um dos que melhor conheço.

Claro, a sua obra, por demais brilhante, não pôde ser relegada ao ostracismo de livro barato em sebo, como a de Anatole France; tampouco, como a de um Claudel, chegou a se tornar um bicho admirado, mas de longe, pois fundamentalmente estranho aos animaizinhos do cativeiro — o pensamento de Valéry não se opõe ao clima das classes falantes atuais. E, no entanto, o Valéry que é hoje cultuado pela parte mais cool da inteligência francesa é muito diverso do grande homem oficial que morreu em 1945 pesado de honras, em meio à balbúrdia pública dos obséquios nacionais decretados por De Gaulle, decorado em prosa e verso pela crítica européia de então.

Porque, de fato, quando da sua morte, Valéry mal poderia prever a inversão que a recepção da sua obra iria conhecer nos anos ulteriores. Essa mudança se deu por dois acontecimentos. O primeiro, a publicação póstuma dos monumentais Cahiers, os célebres cadernos privados que ele começara a escrever quotidianamente a partir de 1894. De uma escrita críptica, muito diversa da prosa arguta e elegante de homme du monde que nos revela as Variétés, os Cahiers são uma coleção de esboços, de intuições, de idéias mais ou menos acabadas, mais ou menos geniais — algumas delas clarividentes, como a crítica lingüística à metafísica (que se vulgarizaria na segunda metade do século) ou a anunciação da pragmática nos estudos da linguagem (como mostrou Michel Jarrety em Valéry devant la littérature).

Esse esforço editorial coincidiu com a lenta mas decidida ascensão da esquerda cultural na França do pós-guerra. Foi então que os darlings dos salões de vanguarda, gente como Nathalie Sarraute, Francis Ponge e Philipe Sollers, insurgiram-se contra a admiração unânime pelos alexandrinos conscienciosamente compostos de “La Jeune Parque” (1917) e dos poemas de Charmes (1922), taxando-os de “neoclássicos” (rótulo em si mesmo nada desonroso), de derivações pioradas de Mallarmé (o que é falso; Pierre Guiraud mostra muito bem a diferença de arte entre os dois). São críticas ralas que não se esforçam em perceber como a técnica poética de Valéry, aparentemente (nos termos deles) retrógrada, integra-se à sua filosofia da linguagem, tão (como eles diriam) avançada. Em vez disso, não mais do que a reiteração dos critérios cronocêntricos: de que uma poética é necessariamente dependente de uma certa época, essa “coisa” que a determina, o que lhe escapa sendo “anacrônico”; de que o artista, seja rompendo com o mestre, sendo indo “mais longe” do que ele, deve perpetuamente incensar o Novo, esse ídolo sempre redivivo, filho poupado de Crono.

Tal julgamento, primeiro uma idiossincrasia provocadora dos recém-chegados, difundiu-se mais e mais entre a intelectualidade francesa (ninguém quer parecer bourgeois), e hoje é corrente entre os agathoi a visão de que o Valéry de “Cimetière marin” ou de “La Pythie” é um bom autor de vestibular, mas que seu melhor estaria na prosa, sobretudo naquela mais abstrusa, mais consoante ao “espírito do nosso tempo”, pós-estruturalista antes da hora, dos Cahiers. Se a percepção de um autor maior como Valéry conheceu uma inversão tão importante, imagine o leitor a quantidade de talentos mais modestos imolados ao Moloch banal e insaciável da crítica cronocêntrica.

O exemplo é ilustrativo de o quanto o cronocentrismo é uma arma retórica eficaz na guerra cultural, quer seu uso se dê de forma intencional ou não. Primeiro, ele serve para as guerrilhas vanguardistas ascenderem aos postos prestigiosos — jornais, revistas, editoras, universidades; a vaidade, natural em todo homem, aguçada no intelectual, não tolera o olhar de desdém de quem se arroga o ápice do processo histórico: eis as portas abertas aos novos donos do discurso. Uma vez lá, estes últimos põem-se a moldar o mundo à sua imagem e semelhança, autorrealizando suas profecias. Assim, todo adversário vai se tronando um anacronismo aberrante, um João Batista tão mais incompreendido quanto mais esperneador; entrementes, o poder dos novos grupos mais e mais se consolida, sua autoridade passa mais e mais inconteste. O cronocentrismo ao mesmo tempo abre-lhes espaço, suprime-lhes os discordantes, legitima-os. Daí sua recorrência — vejam se, entre nós, não foi bem essa a tática dos irmãos Campos.

É também por essa lógica que o suposto contraste entre o reacionarismo político e o progressismo estético dos primeiros românticos franceses ou de um T. S. Eliot deixa um bom número de críticos intrigados como pelo mistério da Trindade. Como se quem quiser “avançar” em arte (ou em educação ou em ciência ou em política) devesse estar por isso mesmo obrigado a “avançar” em todas as outras atividades do espírito. O tempo é tão coisa que se impõe simultaneamente em todo domínio da vida humana; só é possível aceitar em bloco seu desenvolvimento (posição progressista) ou negá-lo por inteiro (e cair no obscurantismo). Um falso problema desse tipo distrai-nos de uma questão crítica realmente substantiva: como, a partir “de dentro” do pensamento desses autores (e não de abstrações históricas), relacionam-se suas opiniões políticas e suas escolhas formais? E haveria relação necessária entre ambos?

Levada assim à caricatura, pode a idéia louca do cronocentrismo parecer um desvio da vanguarda cultural, de umas poucas mentes raskolnikovianas intoxicadas de ambições e de palavras sem substância. Mas quantas vezes nós mesmos já não nos consolamos pelo triunfo de um autor medíocre com a idéia de que seu nome não vai sobreviver ao sucesso passageiro, de que a História é uma espécie de semeador de parábola, separando escrupulosamente o joio do trigo? Há um conforto em escamotear a realidade por demais humana da história literária, as vaidades, os conchavos, os justiciamentos que lembram os de qualquer corte, de qualquer assembléia. Enquanto isso, os que prosperam nem suspeitam uma mediocridade possível, e que o olvido seja leve ao homem de talento fora da “sua época”.

 

Por Rodrigo de Lemos www.dicta.com.br