CRONOCENTRISMO
E CRÍTICA LITERÁRIA
Curioso como os detratores do eurocentrismo e do
logocentrismo e do falocentrismo deixam passar em silêncio uma categoria que, a
um observador desinteressado, não deveria ser motivo de menor escândalo do que
as primeiras: o cronocentrismo, a mais ou menos consciente transformação do
tempo (ou de um certo momento do tempo) em coisa, em algo cuja
essência pode ser definida a exemplo de uma cadeira, em algo que pode ser
estudado como um bicho de laboratório, alçando-se daí a causa de fenômenos, a
critério de julgamento, a móbil de ações. Nunca encontrei quem hoje defendesse
a sério essa posição tal qual; creio, entretanto, que nem por isso ela está
menos viva, e viva exatamente porque anônima e difusa, quer como pressuposição
tácita entre palestrantes e suas audiências, quer como o sentimento secreto
unindo autor e leitor.
O cronocentrismo pode, claro, manifestar-se em meios
intelectuais restritos como fetichização de um período pretérito (e uma Idade
Média de cartolina em alguns círculos católicos é o primeiro exemplo que me vem
à mente), mas, para a massa dos educados lato sensu, ele aparece como
aquilo que Jacques Maritain chamou de cronolatria, o uso dos in e dos outs
das revistas de moda no campo das idéias, seguindo-se daí a fatal legitimação
do presente e a transformação do conceito em voga ontem em algo tão risível e
tão absurdo quanto uma anágua ou um gorrinho de melindrosa. É a adoração
narcísica da própria época — essa época não se definindo por mais do que pelo
espaço entre dois derniers cris. Talvez por isso os defensores do multi-
a qualquer preço sejam de uma inconsciência tão complacente quanto ao
cronocentrismo: é ele que os legitima; por trás da poeira levantada pela
caravana de palavras vagas, difícil é escutar, no seu contexto e
nos seus próprios termos, o discurso dos homens sobre as mulheres na longa
era de trevas anterior ao advento de Simone de Beauvoir ou o que os padres da
Igreja entendiam realmente por pecado da carne. Para “dar voz” aos excluídos
(usando a metáfora de que eles mesmos se servem), é preciso abafar a dos seus
supostos algozes.
Mas tudo isso é coisa por demais sabida.
Interessa-me aqui dar um exemplo de como o cronocentrismo
realiza-se em um domínio preciso, a literatura, e mais especificamente na
crítica literária — esse altar vazio a qualquer ídolo vagabundo, bolsa de
valores abjeta em que um rumor certo plantado no lugar certo decide o
esquecimento de alguns e o triunfo de outros. Esta última metáfora, já aviso,
peguei emprestado de Paul Valéry, e é exatamente o caso dele que vou examinar,
não sendo um dos mais trágicos, mas um dos que melhor conheço.
Claro, a sua obra, por demais brilhante, não pôde ser
relegada ao ostracismo de livro barato em sebo, como a de Anatole France;
tampouco, como a de um Claudel, chegou a se tornar um bicho admirado, mas de
longe, pois fundamentalmente estranho aos animaizinhos do cativeiro — o
pensamento de Valéry não se opõe ao clima das classes falantes atuais. E, no
entanto, o Valéry que é hoje cultuado pela parte mais cool da
inteligência francesa é muito diverso do grande homem oficial que morreu em
1945 pesado de honras, em meio à balbúrdia pública dos obséquios nacionais
decretados por De Gaulle, decorado em prosa e verso pela crítica européia de
então.
Porque, de fato, quando da sua morte, Valéry mal poderia
prever a inversão que a recepção da sua obra iria conhecer nos anos ulteriores.
Essa mudança se deu por dois acontecimentos. O primeiro, a publicação póstuma
dos monumentais Cahiers, os célebres cadernos privados que ele
começara a escrever quotidianamente a partir de 1894. De uma escrita críptica,
muito diversa da prosa arguta e elegante de homme du monde que nos
revela as Variétés, os Cahiers são uma coleção de esboços, de
intuições, de idéias mais ou menos acabadas, mais ou menos geniais — algumas
delas clarividentes, como a crítica lingüística à metafísica (que se
vulgarizaria na segunda metade do século) ou a anunciação da pragmática nos
estudos da linguagem (como mostrou Michel Jarrety em Valéry devant la
littérature).
Esse esforço editorial coincidiu com a lenta mas decidida
ascensão da esquerda cultural na França do pós-guerra. Foi então que os darlings
dos salões de vanguarda, gente como Nathalie Sarraute, Francis Ponge e Philipe
Sollers, insurgiram-se contra a admiração unânime pelos alexandrinos
conscienciosamente compostos de “La Jeune Parque” (1917) e dos poemas de Charmes
(1922), taxando-os de “neoclássicos” (rótulo em si mesmo nada desonroso), de
derivações pioradas de Mallarmé (o que é falso; Pierre Guiraud mostra muito bem
a diferença de arte entre os dois). São críticas ralas que não se esforçam em
perceber como a técnica poética de Valéry, aparentemente (nos termos deles)
retrógrada, integra-se à sua filosofia da linguagem, tão (como eles diriam)
avançada. Em vez disso, não mais do que a reiteração dos critérios
cronocêntricos: de que uma poética é necessariamente dependente de uma certa
época, essa “coisa” que a determina, o que lhe escapa sendo “anacrônico”; de
que o artista, seja rompendo com o mestre, sendo indo “mais longe” do que ele,
deve perpetuamente incensar o Novo, esse ídolo sempre redivivo, filho poupado
de Crono.
Tal julgamento, primeiro uma idiossincrasia provocadora dos
recém-chegados, difundiu-se mais e mais entre a intelectualidade francesa
(ninguém quer parecer bourgeois), e hoje é corrente entre os agathoi
a visão de que o Valéry de “Cimetière marin” ou de “La Pythie” é um bom autor
de vestibular, mas que seu melhor estaria na prosa, sobretudo naquela mais
abstrusa, mais consoante ao “espírito do nosso tempo”, pós-estruturalista antes
da hora, dos Cahiers. Se a percepção de um autor maior como Valéry
conheceu uma inversão tão importante, imagine o leitor a quantidade de talentos
mais modestos imolados ao Moloch banal e insaciável da crítica cronocêntrica.
O exemplo é ilustrativo de o quanto o cronocentrismo é uma
arma retórica eficaz na guerra cultural, quer seu uso se dê de forma
intencional ou não. Primeiro, ele serve para as guerrilhas vanguardistas
ascenderem aos postos prestigiosos — jornais, revistas, editoras,
universidades; a vaidade, natural em todo homem, aguçada no intelectual, não
tolera o olhar de desdém de quem se arroga o ápice do processo histórico: eis
as portas abertas aos novos donos do discurso. Uma vez lá, estes últimos
põem-se a moldar o mundo à sua imagem e semelhança, autorrealizando suas
profecias. Assim, todo adversário vai se tronando um anacronismo aberrante, um
João Batista tão mais incompreendido quanto mais esperneador; entrementes, o
poder dos novos grupos mais e mais se consolida, sua autoridade passa mais e
mais inconteste. O cronocentrismo ao mesmo tempo abre-lhes espaço, suprime-lhes
os discordantes, legitima-os. Daí sua recorrência — vejam se, entre nós, não
foi bem essa a tática dos irmãos Campos.
É também por essa lógica que o suposto contraste entre o
reacionarismo político e o progressismo estético dos primeiros românticos
franceses ou de um T. S. Eliot deixa um bom número de críticos intrigados como
pelo mistério da Trindade. Como se quem quiser “avançar” em arte (ou em
educação ou em ciência ou em política) devesse estar por isso mesmo obrigado a
“avançar” em todas as outras atividades do espírito. O tempo é tão coisa
que se impõe simultaneamente em todo domínio da vida humana; só é possível
aceitar em bloco seu desenvolvimento (posição progressista) ou negá-lo por
inteiro (e cair no obscurantismo). Um falso problema desse tipo distrai-nos de
uma questão crítica realmente substantiva: como, a partir “de dentro” do
pensamento desses autores (e não de abstrações históricas), relacionam-se suas
opiniões políticas e suas escolhas formais? E haveria relação necessária entre
ambos?
Levada assim à caricatura, pode a idéia louca do
cronocentrismo parecer um desvio da vanguarda cultural, de umas poucas mentes raskolnikovianas
intoxicadas de ambições e de palavras sem substância. Mas quantas vezes nós
mesmos já não nos consolamos pelo triunfo de um autor medíocre com a idéia de
que seu nome não vai sobreviver ao sucesso passageiro, de que a História é uma
espécie de semeador de parábola, separando escrupulosamente o joio do trigo? Há
um conforto em escamotear a realidade por demais humana da história literária,
as vaidades, os conchavos, os justiciamentos que lembram os de qualquer corte,
de qualquer assembléia. Enquanto isso, os que prosperam nem suspeitam uma
mediocridade possível, e que o olvido seja leve ao homem de talento fora da
“sua época”.