domingo, 30 de março de 2014


INFLUÊNCIA DAS VOZES 
 

Nunca fiz um poema limpo
como o avental de minha mãe:
sempre os outros e o pó dos Outros
puseram em mim sua presença. 

Como na infância, há sempre um vulto
emergido de algum silêncio.
Para ajudar-me a escrever,
vem segurar na minha mão. 

Mas rasgo tudo, rasgo o que amo
e vejo tudo realizado
nas outras mãos, enquanto fico
desconfiado de minha força. 

Às vezes mostro a meus amigos
estas flores, peço-lhes água.
eles sorriem, são meus amigos,
mas também estão no deserto. 

Já não preciso ser autêntico:
sobre uma só realidade
eis-me na terra como os outros,
sou os outros, e morro só.
 
Alberto da Cunha Melo. O cão de olhos amarelos. São Paulo: A Girafa, 2006, p. 254.