O CANTO
O canto, mesmo que seja para que a noite desça sobre a alma.
O canto, mesmo para que cesse a vida. O canto, mesmo sem
esperança.
Mesmo que as estrelas caiam sobre antigas torres onde
ficaram sombras de
mortos
soluçando.
E as crianças sejam impuras. E as mães não recuperem a
infância.
Mesmo que o coração não possa reter uma só nota da ária
angélica
nem conduzir consigo, para a sombra, a palpitação de coros
inefáveis.
O canto, mesmo que seja para que a voz permaneça amarga e
inapreendida,
mesmo que seja para que os sonhos se asfixiem lentamente
e reine, para sempre, a solidão feroz
dos píncaros desertos,
dos rochedos,
da treva.
Alphonsus de Guimaraens
Filho. Só a noite é que amanhece.
Rio de Janeiro: Record, 2003, p.220.