sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

CONTUMÁCIA



Maldita a vida me seja, 
três vezes maldita seja 
a vida que me desastra 
e que por ser-me finita, 
três vezes seja maldita 
e amaldiçoada madrasta.

Quem me fez como um qualquer, 
dormindo aonde estiver, 
saiba deste desprazer, 
para sempre e desde saiba, 
para que o seu Ser não caiba 
na pequenez do meu ser,

que eu não pedi para estar 
com minhas pernas no andar, 
com minha emoção a sentir 
este universo que tapa 
a minha boca num tapa 
e a minha língua sem Ti,

essa coisa que fede a iodo, 
como a água do mar ou do 
envelhecimento o rim, 
essa coisa que derrama 
seu púbis velho de chama 
a extinguir-se quase ao fim,

corpo de Deus! Corpus Christi! 
Viste-O algum dia? Tu O viste 
sequer um dia como tu? 
Integral e à dor exposto, 
desde o cio ao suor do rosto, 
desde impotente até nu?

Os meus membros são crepúsculos! 
São sangue e iodo os meus músculos, 
é iodo e sangue a minha cruz. 
Por que não nasci não sendo? 
Por que, ao amanhecer, acendo, 
noutra treva, cega luz?


Se além da terra existe ar, 
se além da terra ainda há 
por menor que seja, um seja, 
como à noite volta o dia, 
como, ao corpo, o que o procria, 
como, em mim, meu ser esteja!

Dentro ou fora, qual gaveta, 
para que, em mim, o ser meta 
quem, em mim, é este meu ser, 
olho, em volta, à minha volta, 
e olho nada — só o que solta 
de qualquer um: quem ou o quê?

Nada é, pois tudo se sonha. 
E se alguém me falar: ponha 
tudo o que lhe resta, e resta 
no que, ao pôr-se, se me põe, 
para que em mim meu ser sonhe, 
vivo morto — e a morte empesta!

Como dar à vida pôde 
o nada ser que sou de 
outro feito pelo ser?
De outro ser, igual a mim,
mas de outro início a outro fim, 
noutra vida até morrer?

Ó envelhecer do meu estar! 
Da leitura de Balzac, 
de La Comédie Humaine, 
se passaram tantos anos 
nos malogros desenganos, 
sem disfarce ou mise-en-scène.

Bela Eugénie Grandet:
sois lembrança a anoitecer 
pelas tardes do meu Carmo, 
quem me traz a quem não sou 
na usura do pai Goriot 
que me a mim dá, para dar-mo

no meu duplo a ser mais dois, 
quais búfalos que são bois, 
ao mar meu a ser mais mar de 
ontem que ao ser-te, alma, foi-te, 
nas noites que são mais noite, 
nas tardes que são sem tarde.


Só me lembro das andorinhas, 
que hoje são luas-vinhas 
que iam e vinham às seis, 
só me lembro das sequazes 
na imprecisão de alguns quases, 
na distância de vocês!

Locador de um condomínio 
frustrador de um hímen híneo, 
frustrador de um hímem são, 
locador que loca um louco, 
de carne e ossos sou reboco 
deste barro em maldição.

Tudo é farsa, menos dor. 
Sou, em mim, o que me sou 
desde o ventre que me fez. 
E contemplo a arraia, e raia 
dela, como de uma praia, 
a noite toda. Ei-la aqui. Eis:

andaime, sucata, ferro, 
vagido, vagina e berro, 
viatura e papelório, 
passa tudo, e é a viatura 
conduzindo à sepultura
meu ser morto. E sem velório.

Pois viu a terra e além bebeu-a, 
pois viu o tempo e disse: é meu, à 
solidão cerzindo a roupa 
onde, se me dispo, visto 
o sexo nu de algum Cristo 
que, despido, não me poupa.

Dez anos de coito cego 
são as metáforas que lego 
à solitária da escrita, 
aonde não chega ninguém 
exceto o vazio que vem 
de uma montanha infinita.
 

Róseas ruas da memória, 
róseas ruas hoje escória 
que a soçobrar mais me sobe, 
afundai-me na lembrança 
hoje cravos da criança 
que meu cadáver descobre.

Como, à noite, acendo a lâmpada, 
para imitar (rampa da 
noite) uma inútil manhã, 
como o como que mais como, 
assumo, na idéia, o pomo 
da primitiva maçã.

Assumo o dia original.
Nascimento à morte igual, 
nascimento em morte assumo 
nesta página onde, em branco, 
minha vida inteira arranco 
do nada em que subi. E sumo.

E sumo a sós. Mas prossigo:
na idéia é bem maior o trigo
que na boca o próprio pão, 
na idéia janto a sós, comigo, 
o pão real que mastigo 
feito de imaginação.

Azul manhã em contumácia! 
Negra noite, azul, te amasse 
a idéia sem pensamento, 
te amasse a própria Idéia 
reduzida a uma hiléia 
sem ar, floresta, rio, vento.

Ao ouvir da tarde: fracasso!, 
conquanto, vergando, os braços 
dissessem: pára, enfim finda! 
e morre, ó alma desgraçada, 
eu ousei retornar do nada, 
ousei retornar ainda.

Abandona, ó rei, abandona 
o abono de qualquer cona 
além do sangue e da queixa. 
Cerca a tua casa e a mura 
com o suor da tua estatura, 
e deixa o remorso, deixa-o!

Senhor do teu sofrimento, 
vai-te com o diabo e o vento, 
vai-te com a noite e o monte. 
E fala, ainda que mudo, 
que, do nada, igual a tudo, 
sobre ambos nasces. E põe-te!

Elimina todo se
da pretensão de existir 
na existência que é demérito, 
e no não haver nascido 
elimina-te existido, 
elimina-te pretérito!

Eliminar o talvez.
Não saber dia, hora ou mês, 
não saber até o minuto 
em que me vim sendo feito 
plantando a morte no peito 
e o espinhaço no meu fruto.

Por que o vermeversoverbo
da herbívora erva que eu erbo 
no meu plantio masculino, 
inverte o chão do seu galho 
arrancado do assoalho 
repicando como um sino?

Ter olhos-Deus! Olhos-sóis
tem-no o Deus que cego a sós, 
tem-no o horizonte a pôr-se 
como colírio em dordolhos, 
tem-no quem me olha nos olhos 
como se cego eu já fosse!

Ah!, se a pedra me fizesse 
fazer-me cobrir quem desce 
à região do ser meu se, 
para não haver nascido 
ou o houvesse enfim já sido 
sem que eu dissera: nasci!

Nauro Machado (1935-2015). Antologia poética. Rio de Janeiro: FNB/IMAGO/UMC, 1998, pp.256-261