NOSSO SENHOR DOS PASSOS
Intróito –
Certas coisas só podem ser vividas:
a solidão do santo em sua sede,
o deserto da noite transentida,
a dimensão do Cristo na parede;
o fio que se parte e na partida
o que restar de estrelas nessa rede
que cada coração lança na vida;
quando os espelhos já não querem ver-Te.
As águas de Narciso – fonte nova
a refletir o que da argila é sopro,
quando a morte é somente a contraprova,
que o mundo sendo mundo Te magoa;
quando o corpo é menor que o próprio corpo,
nos passos da Paixão a dor perdoa.
I. Jesus é condenado à morte
Certas coisas só podem ser vividas –
a sentença da dor inconfessada,
a pertença da morte consabida,
a presença do fim na madrugada.
O dia sobe lento e na subida
adensa seus rumores nas fachadas
dos corações e da cidade erguida
sobre calcário e fé e fé pesada.
Nada é leve. Na via, o tempo sofre.
Árvores, aves, pedras adivinham:
não há canto que cante sua estrofe
sem ver e imperativo impelir – vede!
Pois são poucos os poucos que caminham
na solidão do santo em sua sede.
II. Jesus carrega a Cruz às costas
A solidão do santo em sua sede,
que a multidão não toca nem perdoa,
mais que desdém é medo sobre medo
– como um murmúrio a procissão escoa –
que a empurra contra as brechas da parede
(essa parede cega só ressoa
as horas sujas do seu sujo enredo);
a multidão em ódio se amontoa
numa atenção cruel, olho da morte.
Perdeu ou nunca teve o dom do indulto?
Os passos pesam, pesa a luz ao norte.
O peso da passada consolida
(a multidão não vê), no dia oculto,
o deserto da noite transentida.
III. Jesus cai pela primeira vez
O deserto da noite transentida
é atravessado sola a sola em brasa,
no dia em febre. A via estremecida,
com a luz pavorosa que a extravasa,
abre-se pedregosa e parricida.
Aquele que caiu não se defasa –
é feita de ladeiras esta vida,
os caminhos não são a sua casa.
Açoite após açoite o ar padece,
a carne é queda, os ossos combalidos,
o coração só nervo é pura prece:
“– Não sabem o que fazem, Pai, pois hei de...”
Não se esquece daqueles esquecidos
da dimensão do Cristo na parede.
IV. Jesus encontra Sua Mãe
A dimensão do Cristo na parede,
da casa pobre que é o coração,
se amplia sem palavras, porém, crede,
o que em vós é silêncio e atenção.
Na via não há sombras, arco verde,
onde a dor possa respirar seu não,
a mão que suaviza toda sede
sabe no ser seu fundo de sertão.
Mais do que o sangue os olhos veem amor,
os espinhos e a Cruz como troféus,
as chagas como luz além da dor:
a Mãe, a Mãe transfigurada em vida
segura os polos entre inferno e céu –
o fio que se parte... e na partida?
V. Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a Cruz
O fio que se parte e na partida
até os sabedores vão-se em fuga,
antes irão negar como suicidas
negam do dia a luz mais taumaturga,
pois negar se tornou uma medida.
O ar seco sufoca, pó nas rugas,
o lábio insulta – língua, essa ferida,
o seu silêncio peca quando expurga.
Mas basta um, mesmo estrangeiro alheio
(a inocência cantou nos altos ramos),
para apreender do sol o seu esteio
e na carga dos ombros ler a lei de
“amai como se amassem o que Eu amo
– o que restar de estrelas nessa rede”.
VI. Verônica limpa o rosto de Jesus
O que restar de estrelas nessa rede
que o coração armou dentro do instante,
o derradeiro, sempre, pois susteve
em sua malha o único semblante
(os juazeiros sofrem seu desverde,
mas dentro e fora o estio é semelhante) –
o que está, estará e eterno esteve
gravado como um dom impressionante.
A mão que enxuga o sangue intui a Face
– sol intacto –, pois nada a apagaria
nem tapas nem ultraje nem trespasse.
O gesto lenitivo nas feridas
também mitiga as tantas agonias
que cada coração lança na vida.
VII. Jesus cai pela segunda vez
Pois cada coração lança na vida
os seus próprios abismos e voragens,
e também alguns becos sem saída,
nesta margem procura a outra margem,
mas ao chegar lá o ouro se invalida
e o peso se redobra na bagagem.
Não viu na via a luz recém-nascida –
essa imagem de todas as imagens,
que, na manhã, percorre o seu calvário.
Caiu. E na segunda queda até
os segundos demoram ao contrário.
As pedras choram: “– Pai, como esquecer-Te?”
Os céus envergonhados dizem: “– é
quando os espelhos já não querem ver-Te.”
VIII. Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
Quando os espelhos já não querem ver-Te,
é que a alma enlouqueceu o coração,
deixou-se enraizar no mal dizer-Te,
na fúria que acompanha a negação.
A carne apanha rasgos de acender-se,
em chama fria anula o seu carvão,
mas há também partilha no doer-se –
as lágrimas de irmãs para um irmão.
Ali vão elas. Chagas, exaustão,
a injúria do látego, desdém,
nada, nada as demovem da Paixão.
Lançaram os espelhos numa cova,
ataram alma e coração além
das águas de Narciso – fonte nova?
IX. Terceira queda de Jesus
As águas de Narciso – fonte nova? –
escondem precipícios na clareza
da sua superfície, que é dolosa,
açula a sede e abraça a incerteza.
Não há lago ou alívio. O ar desova
no cascalho da via suas presas;
nessa terceira queda dolorosa,
no corte sobre corte, a chaga acesa.
A Esperança ajoelhada se levanta
– contrária à narração que já fraqueja –,
no Sangue todo sangue se agiganta,
mas a simplicidade é seu escopo,
movendo em carne e osso a própria Igreja,
a refletir o que da argila é sopro.
X. Jesus é despojado de Suas vestes
“– A refletir o que da argila é sopro”
– diz a Voz. Quem a escuta sem pavor?
“– Pois há maior nudez que a do corpo,
e o corpo é da alma um pobre andor,
quer a cada vez um capricho novo,
mas Quem daria um corpo sem amor?
A via é um sudário, lá – o topo,
o fim dos sacrifícios sem valor.
Na túnica inconsútil lançam dados?
As outras vestes rasgam sem pudor?
Quem verdadeiramente desnudado?
A Esperança sangrando se renova...”
– cala-se a Voz. Aguarda a luz transpor
e a morte ser somente a contraprova.
XI. Jesus é pregado na Cruz
“E a morte for somente a contraprova
de que a morte não pode interrompê-Lo”
– volta a Voz. A manhã é pavorosa,
lenta como se fosse um pesadelo.
A Voz: “A Cruz é nova, como é nova
a luz que se derrama – seu modelo.
A profundidade é sua fé, rosa
humilde sua altura, os braços – zelo,
mas em toda a extensão a Caridade
suportando as esponjas com vinagre,
os cravos n’alma, o véu de insanidade
que tolda a multidão, a vil coroa.
Tu, por seres milagre dos milagres,
o mundo sendo mundo Te magoa.”
XII. Jesus morre na Cruz
“Que o mundo sendo mundo Te magoa,
e a carne por ser carne é danação”
– nas galerias d’alma a Voz ecoa,
e ecoa pelos montes, Gruta e chão.
O vento cessa. A hora se esboroa,
a terra se contrai em aflição.
O sol se apaga, o dia se enevoa.
Sete palavras formam um perdão.
No vértice da dor e do abandono
(alguém fere a Esperança num dos lados),
o sangue agora cai, mas vence Cronos.
E depois do fel num ramo de hissopo,
o Espírito se entrega consumado –
quando o corpo é menor que o próprio corpo.
XIII. Descida do corpo de Jesus da Cruz
Quando o corpo é menor que o próprio corpo,
a luz se densifica e amadurece.
O céu, a via, o ar cessam todo esforço,
e não há coração que não confesse.
Essa leveza, menos do que um sopro,
rege as estrelas, átomos e preces;
séculos vão e vêm – são seus esboços,
e se ela perecer, tudo perece.
A Esperança, descida do madeiro,
agora repousa, é leve ao descer.
– Linho e mirra aos despojos do Cordeiro,
as mãos que amparam, Ele as abençoa.
Cadê, morte, seu látego? Porque
nos passos da Paixão a dor perdoa.
XIV. Sepultamento de Jesus
Nos passos da Paixão a dor perdoa,
pois sofreu para isto – perdoar;
o tempo aos quatro ventos apregoa
que a morte já não pode dominar.
A vida fio a fio se encordoa,
dedilha suas pautas pelo ar
desse terceiro dia. A luz é boa,
a via é vertical e seguirá
pelas planícies vivas do mistério.
O corpo da Esperança é insepulto,
sua alma reverbera seu império;
retornar não é uma despedida,
porque para encarnar o novo indulto
certas coisas só podem ser vividas.