sexta-feira, 10 de junho de 2016

MINHA PALAVRA


Se lugar de nascimento é destino, ao nascermos na mesma cidade, parece que estávamos amorosamente destinados um ao outro. Mais: a música do nosso primeiro cenário é um desenho melódico de duas ruas de nossa infância – Francisco Magalhães e Castro Alves; esta é travessa daquela. Alessandra é três anos mais velha, passou parte de sua meninice na Francisco Magalhães. Minha primeira lembrança de estar no mundo foi na Castro Alves. No semiárido do médio São Francisco, naquela cidade do interior da Bahia. Costumo dizer que houve uma canção das ruas antes de nos encontrarmos.    
E nos encontramos algumas décadas depois. Mais precisamente numa noite de abril, de 2006. Um sábado. Sim, me lembro; um amor assim traz em sua túnica fios de eternidade. Alessandra é uma presença. Se ela não estiver por perto, o mundo fica um pouco mais errado.
Quis captá-la através de versos. Vagueei em torno do objeto sem conseguir capturá-lo. Foram e são várias tentativas de poemas. É o sorriso? E que lume despertando em mim o menino mais antigo. É um jeito de olhar que só eu sei? E que acolhimento para as minhas dores e indecisões. É aquele tom de voz que me faz gargalhar? A luz do rosto confirmando a vida? O corpo refugiando o outro? Quando a mulher que amamos se entrega... Ah, meu caro, se não sabe, procure adivinhar. O gozo do corpo é também um tipo de milagre.   
Nos desentendemos? Claro. Brigamos? É óbvio. Embora poucas, essas desavenças são uma angústia para mim. Verdadeiro desamparo. Não consigo me apaziguar se não retornar à velha harmonia. Aquela comunhão silenciosa da presença. O fato incontornável é amar Alessandra inteiramente. Não importam circunstâncias ou acontecimentos.               
            Em 1997, eu estava no lançamento de Urbanos, seu primeiro livro, de contos, vencedor de prêmio. Sou fã antes de nos conhecermos pessoalmente, porque Alessandra foi meu primeiro modelo literário. Um tipo de norte que eu acompanhava, de longe, bem longe, Bom Jesus da Lapa. Lá, um amigo me emprestou seu segundo livro de contos – Obscuros. Seu primeiro romance – Henrique – li sofregamente; quando ela esteve na cidade para o lançamento, eu não tive condições de comparecer, mas pedi à minha ex-mulher que comprasse e pedisse um autógrafo à autora. Acompanhei entrevistas, textos em jornais, de longe mapeava seus passos. Na foto numa matéria de jornal, vi quando ela cortou o cabelo curtinho. A força, a coragem, a beleza de sua escrita, sua postura diante da arte literária sempre foi um exemplo a ser seguido. As poucas vezes que nos deparamos antes do Encontro (com maiúscula porque foi evento de altíssima gravidade), eu a olhava admirado e besta. Uma vez, na década de 1990, numa palestra na biblioteca central da UFBA, eu fui só com o intuito de vê-la. Sentei-me num lugar estratégico e a fiquei procurando. Soube, também através de jornais, quando ela foi fazer o doutorado em Belo Horizonte. Nos outros livros, já estávamos juntos, lemos na cama o original de O sol que a chuva apagou; gritamos em uníssono ao sabermos do prêmio conquistado por seu romance Primavera nos ossos. Quando ela ganhou um prêmio por seu conto “Felicidade não se conta”, que está em Chuva secreta, rimos em parceria de uma foto que ela teve que tirar segurando um cheque gigante, tipo Porta da Esperança, de Sílvio Santos.       
            Uma vez, já morando juntos, eu escrevendo no micro, e como sempre, absorvido feito um lunático, ela me disse: “– Está trabalhando, meu amor?” Entrei em outra dimensão. Ah, meu caro, você pode achar isso excessivo, que exagero, tempestade numa gota, mas ninguém nunca havia levado em consideração que aquela entrega à escrita fosse um trabalho. E a escrita, para dizer com Drummond, é toda a minha vida que joguei. Disfarcei uma lágrima, e respondi, numa felicidade imensa, que sim, estava trabalhando. Ela me ajudou a aceitar o poeta que eu sou.  
            Num fevereiro, dia do meu aniversário, ela combinou com nosso amigo Kiko Lisboa, e este, com a cara mais lavada, me pediu, à noite, para ir com ele pegar um computador. Onde? Nordeste de Amaralina. Fazer o quê? Fui. Mas fui a contragosto. Kiko, lapense ele também, possui esses rompantes, daí eu não ter estranhado tanto. Logo no dia dos meus anos? Ele me segurou por lá. Na volta, ao entrar em casa – uma festa surpresa para mim. Pense num contentamento? Pensou? Foi maior. Sim, adoro comemorar aniversário.  
            Quando descubro um poeta que eu não conhecia, displicentemente deixo o livro em algum lugar visível da casa para que ela pegue e leia. Torço para que goste dos poetas que admiro. Faço de conta que não estou interessado, mas basta ela falar que minha atenção se concentra inteira em suas impressões críticas sobre o livro em questão.  
Ah, meu caro, você não faz ideia da alegria que me tomou ao perceber que ela percebia o que eu percebera no universo da literatura. Não tentarei explicar, mas... Ao ler determinado autor, ela exclama: “– Ele sabe!” Como se diz hoje: entendedores entenderão. Conhece aquele instante que parece que o tempo foi suspendido, e o véu da vida foi levantado e as coisas se tornam mais reais? Se não conhece, deveria. Pois é. Quando aconteceu, percebemos isso um no outro.        
            Nas alegrias profundas ou decepções tremendas, Alessandra é sempre a primeira pessoa que me vem à cabeça. Sinto necessidade de dividir com ela o que acabo sabendo. Por isso, meu caro, cuidado ao me contar segredos. É contar para os dois.  
Em inúmeros momentos, nesses dez anos de convivência, me pego novamente apaixonado. Até hoje me espanto e digo cá com meus botões joãoninos: “– Caramba! Estou casado com Állex Leilla.” É feito as manhãs: nascem todos os dias e são sempre originais. Apesar da sentença de mestre Bandeira no poema “Arte de amar”, tenho a nítida sensação de que aquela melodia das ruas era e é uma melodia de almas.  
Alessandra é minha palavra.