A poeta cataguasense Celina Ferreira faleceu no Rio de Janeiro no último dia 05 de agosto. Como sempre desejou, ela foi enterrada no dia seguinte em Cataguases, numa comovente cerimônia onde foram falados alguns de seus poemas, como depois me disse o poeta Joaquim Branco. Dessas falhas imperdoáveis, eu acabei não indo ao cemitério, pois li (mal) o comunicado do próprio Joaquim e entendi que a cerimônia seria no Rio.
Com a morte de Celina Ferreira, perde a poesia brasileira uma de suas grandes vozes. Em novembro de 1998, ela esteve pela última vez em Cataguases, para o lançamento de seu livro Papagaio Gaio, quando da inauguração do Anfiteatro Ivan Müller Botelho e do Café do
Museu da Eletricidade. Na ocasião, preparei um texto-palestra que iria ler naquela noite, o que acabou não acontecendo, dada à escassez de tempo. O texto permaneceu inédito até hoje e nem mesmo minha amiga Celina dele teve conhecimento. Eu o publico agora, como última homenagem à grande poeta que se foi.
Poeta de voz maior
Nada mais justo que hoje, nesta inauguração do Café do Museu, como amanhã, na abertura oficial do Anfiteatro Ivan Müller Botelho, a Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho preste sua mais que merecida homenagem a uma das maiores vozes da poesia cataguasense, Celina Ferreira.
Para o poeta-crítico Mauro Mota, “Celina Ferreira chega a um gabarito onde podia ficar. Não precisa mais crescer para ser grande.”. Efusivamente saudada por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Affonso Romano de SantAnna, a poeta Celina Ferreira permanece ainda hoje pouco divulgada e praticamente desconhecida do grande público. Isso mais de 40 anos após seu primeiro livro, Poesia de Ninguém, publicado em 1954.
Trazê-la aqui esta noite foi a melhor forma de se homenagear a poeta, de manter viva a sua voz. Seja através de alguns de seus trabalhos, que vou ler a seguir, seja por meio da encenação de seus poemas infantis que o Grupo de Teatro aqui do Museu – o jovem, desafiador e sonoro Gesamtkunstwerk – fará durante o lançamento do “Papagaio Gaio”, a mais recente publicação de Celina, que acontecerá amanhã à tarde, quando da inauguração do Anfiteatro.
Os poeminhas de “Papagaio Gaio” são inéditos e premiados – e a palavra poeminhas aparece aqui sem nenhuma conotação pejorativa. Ela simplesmente remete ao universo da literatura infantil, onde tudo é rima, remo, romã, reino de joviais papagaios e reis gaiatos e gaios. Esses lúdicos poeminhas de “Papagaio Gaio” existem há mais de 20 anos e já tiveram seu valor devidamente reconhecido por troféus como o Prêmio Brasília de Literatura Infantil da Fundação Cultural do Distrito Federal, em 1978, e o Prêmio Estadual de Literatura Infantil, do Rio de Janeiro, em 1971.
Premiados e inéditos. Essa parece ser a sina, não lá muito gaia, da maioria de nossos poetas. É difícil escrever e não ser lido. Principalmente escrever poemas, artefato cujo código de leitura apresenta certas dificuldades para o iniciante. Que maravilha, portanto, que os gaios poeminhas deste livro de Celina não tenham permanecido inéditos. Como inédita não ficou a grande maioria dos poemas que escreveu.
Após Poesia de Ninguém, sua estreia em 1954, vieram Nave Incorpórea (1955), Mundo Encantado (Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da Prefeitura do Distrito Federal, 1957), Invenção do Mundo, O Cavalo Encantado, A Princesa Flor-de-Lótus, todos os três de 1958, Poesia Cúmplice (Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal, 1959) e Espelho Convexo (1973).
Isso sem contar a coletânea Hoje Poemas, editada em 1966, com ilustrações de Guignard, de quem Celina foi a eterna musa. E é exatamente de Hoje Poemas, que ganhei das próprias mãos de Celina em 1970, durante uma das visitas ao seu simpaticíssimo apartamento da Praia do Flamengo, que selecionei alguns dos trabalhos que vou ler. E de onde também, ao que me parece, sua filha Adriana escolheu, por sua vez, seus preferidos, para que eu os lesse.
Celina Ferreira é parte de uma geração cataguasense intermediária entre a eclosão modernista da Revista Verde, nos anos 1920, e a experimentação pós-moderna do concretismo e do poema processo, representada pelos jornais SLD e Totem, que eu e o poeta Joaquim Branco editamos na década de 1960. Embora contemporânea de Francisco Marcelo Cabral e de Lina Tâmega Peixoto, Celina surge para a poesia um pouco depois do lançamento da Revista Meia Pataca, feita por esses dois poetas na Cataguases do final dos anos 1940.
Oswald de Andrade, o grande baluarte do movimento modernista de 22, publicou um livro chamado “Um Homem sem Profissão: Sob as Ordens de Mamãe”. Celina, não. Ao contrário do “Homem” de Oswald, Celina nunca ficou sem profissão. E nem foi homem nem esteve sob as ordens de mamãe. A palavra é sua profissão. Ela nunca deixou de escrever, mesmo afastada por longo período do meio literário. Redatora da Rádio MEC, no Rio, trabalhou também no Jornal do Brasil e no programa “Olho por Olho”, da extinta TV Tupi. Escrevendo, escrevendo, escrevendo.
Mas jamais se descuidando de burilar suas gemas mais preciosas – seus poemas de rara ourivesaria que retomam o verso em toda sua força, muitas vezes resgatando a métrica, o ritmo & melodia que os modernistas haviam abandonado. E com uma dicção extremamente pessoal, única. Trabalho de grande poeta. Como dela falou certa vez o meu amigo Affonso Romano de SantAnna, palavras que assino embaixo: “Nota-se em Celina Ferreira uma constante valorização da palavra, através de colocações do vocábulo em situações únicas, ao sol, à luz, com todas as suas arestas; isto a par de uma revalorização do verso”.
Agora, uma historinha exemplar, só pra eu encerrar este blablablá e passar logo à leitura dos poemas de minha amiga Celina Ferreira. Ainda no mês passado, a Editora Imago, do Rio de Janeiro, lançou uma alentada antologia organizada pelo conceituadíssimo crítico literário Assis Brasil, intitulada “A Poesia Mineira no Século XX”.
Está todo mundo lá. Dos Affonsos, Ávila e Romano, aos Ronaldos: Cagiano, Claver e Werneck. E mais: Drummond, Murilo Mendes, Emílio Moura, Adélia Prado, Henriqueta Lisboa, Francisco Marcelo Cabral, Lina Tâmega Peixoto, Abgar Renault, Laís Correa de Araújo e todos os Verdes – Ascânio Lopes, Enrique de Resende, Guilhermino Cesar, Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco – e também os Brancos, quer dizer, Joaquim & seus irmãos, o Aquiles e o Pedro, o P.J. Ribeiro.
Enfim, toda a poesia mineira desses mil e novecentos que lá se vão. São 75 poetas, 12 deles de Cataguases – o que não deixa de ser uma glória para a cidade, talvez uma das localidades que tenha fabricado mais poemas & poetas por metro quadrado ao longo deste século. Como no poema de Ezra Pound: “êta penca de gente sabida, sô!”. Pois bem, 12 poetas de Cataguases encontram-se na Antologia, eu inclusive. Mas não Celina Ferreira. E por que não? É bem verdade que Assis Brasil esqueceu-se de poetas como Henry Correa de Araújo, Hugo Pontes, Sebastião Nunes, ou o nosso Plínio Filho. Quer dizer, Celina até que está bem acompanhada no rol dos ausentes. Mas que isso não se faz, isso não se faz Seu Assis! Sim, isso assim não se faz com poetas como esses, esses poetas pra vida inteira, esses assim como Celina Ferreira.
Olha, Celina Ferreira,
como dizia o Drummond
naqueles versos antigos,
o Carlos, o seu amigo:
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
E chega de besteira. Vamos, vamos reler comigo os poemas de Celina Ferreira, poesia da boa, porque verdadeira.
Primeiro, os escolhidos por Adriana, a filha de Celina.
Rondó Muito Louco
Sabeis promessa de vento,
viagens que não podeis.
Sabeis a lua impossível
e o corpo que não tereis.
Ai, tivesse alguma espécie
de tudo que me dareis!
Ilha de Capri não tendes,
então como prometeis?
Anel de areia luzente,
onde é que me encontrareis?
Corpo de relva molhada
por que não me inventareis?
Mar de quanta coisa louca
onde me enlouquecereis?
Sabeis promessa de vento,
Onde e quando cumprireis?
Baladilha sem a quem dar
Quem quiser me peça versos,
que eu darei, seja quem for.
Que não me peça alegria
nem canções de muito amor.
Quem quiser meus versos tristes
eu darei, seja quem for.
Não sei cantigas de riso,
não sei cantares de amor.
Por isso as minhas cantigas
nunca tiveram senhor.
Eu dou, sem mágoa, meus versos
a quem quer, seja quem for.
Eu reparto em cada verso
um pouco da minha dor.
Mas ninguém me pede versos,
ah! se houvesse pedidor...
Eu daria verso e mágoa
a quem quer, seja quem for!
Canção de fazer-de-conta
Eu quisera ser bem clara
como o dia transparente.
Feito lírio, feito palma,
feito fruto na semente.
Eu quisera ser bem pura
como a flor que ninguém sente.
Faze-de-conta, me achaste
como fui antigamente.
Faze-de-conta, sou neve,
brancura na tua mente.
Faze-de-conta eu sou como
me queres interiormente.
Faze-de-conta, mas faze
que aconteça de repente,
que eu me torne branca, branca
como tu me tens na mente.
Como se vê – ou melhor, se ouve –, Celina trabalha com grande mestria a redondilha maior, o verso de sete sílabas, tão comum e batido em nossa língua, mas que nela surge com o brilho de um raro ritmo, essas redondilhas que ondulam em seus poemas numa cadência nova e altamente melódica. Isso sem contar a beleza de versos como aquele “Eu quisera ser bem clara”. Um pretérito-mais-que-perfeito: perfeitíssimo.
Pois é, Chance & Choice/Acaso e Escolha, o princípio estatístico da criação, pode aqui ser aplicado para a poesia, um lance do acaso, como queria Mallarmé. Trabalhar o acaso, no caso de Celina, ou o acaso da escolha, como ocorreu comigo ao reler os seus poemas. De início, selecionei um texto sobre Rosário Fusco, que ela enviou para Marginais do Pomba, a antologia que eu, Joaquim Branco e Fernando Cesário organizamos em 1985, com textos de escritores cataguasenses de várias gerações. De certa forma, Celina nunca deixou de estar à margem, como já vimos no caso da Antologia do Assis Brasil. Nada mais justo que ela figurasse com todas as letras em Marginais do Pomba.
Seu texto chama-se P(Rosário), e traz já no título um inventivo jogo de palavras: prosa, prosário, prosa/rio, pro rosário. Lembro-me dela um dia me falando, não sem uma ponta de espanto, de quando conheceu Rosário Fusco, “aquele homem imenso, todo o uísque, todas as palavras desmedidas”. Vamos lá, então ao seu
“P(ROSÁRIO)
“Iam-me prevenindo sobre Rosário, que não me espantasse, não medisse suas palavras ou me desencantasse com os absurdos. Ele, o próprio absurdo, rosa e rio, charada simples para quem leu Freud, mesmo a galope. E dois amigos me amparavam, temendo minha ingenuidade feita de bloqueios e sabidas defesas.
“Nada disso. Eu ia apenas cair num poço de horror e poesia, fezes fluindo morosamente entre palavrões cálidos, no puro texto rosafusco, limpo em sua agressividade humilde, quase pesarosa. Rosário falava num linguajar direto e sem retoques e eu procurava disfarçar meus enganos, decidida a chamar-lhe Fusca, não entendendo meus atos falhos e exclamando a todo instante: “Freud, que que é isso?”.
“Flor de hemorróidas sangrentas, náusea e pânico, verso branco inserido num contexto sujo, Rosá, rosácea, rosa curtida em puro uísque escocês, que eu me servisse, perdão, eu não desejo beber.
“E Fusca, desculpe-me, Fusco ousado, usado, agora é fácil entender. Rosário escapa de novo, que Freud vá para o diabo. E foram-se depressa, Freud, Jung, Adler. Rosário ficou, falo imenso exorbitando suas funções, punindo a terra e amando-a, trágico e impotente para desfrutar-lhe todos os horrores.
“Eu caía de nuvem em nuvem, descobrindo íntimas crateras e receosa de minha vulnerabilidade. E mais: sabendo que em meus sonhos as imagens translúcidas indicariam um único roteiro – o poço escuro, soterrado pelo medo, contendo mil tesouros de luxúria.
Rosário dormia entre demônios louros, o uísque gotejava da garrafa em decúbito, meus amigos me acompanhavam calados ao regresso de mim mesma.”.
Como podem ver, o texto da Celina é prosa-poema, proeza, proesia. Vamos agora aos poemas que selecionei, por minha conta e risco. Chance & Choice. Sorte & Seleção. Ou Seleção da Sorte?
De
“Morte Menor”
in
Rio do Sono
Enquanto a noite, uma rosa
de fina penugem rala
se adensa mais hora em hora
em tempo e vivida fala;
enquanto rosa, essa noite
que a todo tempo se gasta
e em vivência não pode
construir sua clara
estrutura de silêncio
quase sempre fragmentada,
se noite ou rosa a um tempo
mais se adensa e mais se aclara:
enquanto prossegue pouca,
apenas noite, mais nada,
ou simplesmente uma rosa
ou mais ainda: palavra;
não é o tempo que foge
nem a noite que se gasta:
é o corpo escasseando
e a vida ficando rala.
Mais ainda: é nossa pressa
que mais fundo nos desgasta.
É a rosa gente finando
a sua noite tão parca.
Ainda de
“Morte Menor”
Tenho de matar meu semelhante.
Mãos à obra.
Quem me lava o espírito,
quem me devolve, intacto,
meu sossego? Quem ouve meu grito
de desespero?
Tenho de matar meu semelhante.
Mãos à obra.
Os bons passarão
pelo fio de prata.
Os maus ficarão.
A Esquecida
Quando vim a este mundo,
não por mim – eu vim mandada –
trouxe um destino comigo.
Mas passei por tantas nuvens,
me molhei de tanta chuva,
me perdi em muitos ventos,
virei poeira de estrada,
lírio, rosa, espinho, terra,
que esqueci minha mensagem.
Procuro renovar:
pedra, sangue, cal, areia,
preciso de definir-me
e encontrar o meu perdido.
Choro sangue todo o sempre
quando estou entre oprimidos.
Sinto a fome dos famintos,
sofro a dor dos humilhados,
me consumo no momento.
Minha mensagem é dor.
Eis-me na areia que invento,
areia de um mar profundo:
mar de mistério. Eu, enigma,
consigo descer ao fundo.
Meu corpo verde flutua,
minha alma sobe, incolor.
E no fundo, outro infinito,
mais mergulho, mais atinjo
alturas desconhecidas.
Asas brancas me tocaram.
De folhas faço meu ninho
pelo prazer de fugir.
Nesse voo ilimitado,
humano não me corrompe.
Quem me busca, não me atinge,
quem me atinge é perseguido
como irmão, foge comigo.
A chuva cai. Vai lavando
tanto pó acumulado
do tempo que me antecede.
As imagens vão gritar
e eu, lembrada de mim mesma,
serei humana de novo.
Quero cumprir meu destino.
Não por mim. Eu vim mandada.
Embalo
Serra serra meu menino
serra serra teu destino
serra a tua professora
serra a escola serra o pássaro
serra a gaiola vazia
serra serra já serrou.
Serra a estrela vespertina
a cabeça do fantoche
os brinquedos do gigante
serra o São Jorge da lua
serra a tua namorada
serra serra já serrou.
Serra a mão que escandaliza
serra o pé que pisa torto
serra a cabeça funesta
serra o doido pensamento
serra a fome serra o corpo
serra o lótus serra o abismo
serra serra não serrou.
Anunciação
O verbo, crio-o devagar, no corpo,
como a flor e a palavra: pouco a pouco.
Protegido em redoma não de vidro,
mas de angústia e de sangue o seu tecido.
Vestimenta de carne, pois de corpo
é o verbo que anuncio, hoje tão novo
como o primeiro homem foi nascido
da palavra semente, do seu grito.
Como o primeiro homem no seu lodo
é o verbo resolvido no meu corpo.
Verbo crescendo lesto, arredondado
como o primeiro fruto sazonado.
Corpo e navio, levo uma pergunta
que é palavra, destino, e coisa, e fruta.
Palavra, pois é verbo do meu verbo
que humilde e pressurosa hoje percebo
e guardo aflita, e exausta, e tensa, enquanto
não romper minha carne seu quebranto
de verbo libertado do meu ser,
pronto para a aventura de viver.
E foi com o verbo libertado do seu ser – digo agora, após sua morte – que Celina Ferreira se foi. Pronta para a aventura de desviver.