XIV
Amo tudo aquilo que é puro, justo
e verdadeiro. Amo a troca de anéis ou de alianças entre as criaturas — a
linguagem do pacto e não da ruptura — para manter o que é puro, justo e
verdadeiro no homem. Amo o encontro e o desencontro, desde que sejam reais. Amo
tudo aquilo que é contrato — bárbara palavra — para cumprir todos os seus
termos, seja qual for o contrato. Amo a Vida, o valor maior, sósia de Deus.
Por isso eu me penitencio, se
deixei que alguma vez o orgulho fosse maior do que o meu amor. Eu me
penitencio, se não amei suficientemente para ter sido amado na mesma medida. Se
fui irascível quando deveria ter sido manso e amoroso. Se me encontrei em
minhas inquietações, sem permitir, muitas vezes, que o outro ficasse inquietado
por elas. Se achei que minha palavra fosse a única merecedora de fé. E se, ao
ouvir, só recolhesse aquilo que estivesse mais perto dos meus interesses.
De tudo isso me penitencio.
Porém não me penitencio se, ao
ter sido orgulhoso, pretendesse dar fortaleza ao meu amor, não permitindo que
ele ficasse barateado no mercado dos sentimentos vulgares. Não me penitencio
se, ao não amar suficientemente, por alguma impossibilidade, estive realmente
preocupado no amor maior. Não me penitencio, se passei por irascível, por não
conseguir sustentar uma falsa mansidão. Nem se, inquieto, debalde tentei calcar
os ímpetos e os furores da minha intratável natureza. Não me penitencio, se ao
exigir fé para minha palavra — ainda que só para minha palavra — desejei com
isso manter viva e alta a chama do encontro. Nem por ter falado mais do que
ouvido, se quis ao mesmo tempo mostrar que estava com isso disposto a ir além
do chão entendimento, falando por todos, e sobretudo pelo outro, através de
minha palavra. Nem por ter ouvido somente as coisas que me interessassem: se me
encontrava do mesmo modo preparado para colher na palavra do outro a dádiva suprema.
Para guardá-la em mim.
Orgulhoso, irascível,
contraditório amante, dono, talvez, da única inquietação do universo, mau
ouvinte e predicador sem trégua, não me penitencio: porque jamais quis perder a
minha humanidade.
Ângelo Monteiro. O ignorado. São
Luis: Resistência Cultural, 2012, p.99-100