domingo, 12 de abril de 2015

A BARCAROLA DA NOITE


A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.

A noite vem entrando a barra
trazendo o aroma lá das ilhas.
Sonoro como uma cigarra,
o mar dedilha uma guitarra,
improvisando redondilhas.
A cor do ocaso é tão bizarra
que lembra o pó das cochonilhas.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos barcos.
Surgem redondas como a lua
rosas de fogo pelos arcos.
Um véu de opala além flutua
e andam santelmos pelos charcos.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas
e as açucenas de Navarra
e as orquidéias das Antilhas.

A noite vem numa falua
entrando a barra, entre as galeras.
As sombras trazem para a rua
rosas de estranhas primaveras.
Eis que ansiosas pela lua
as ondas gritam como feras.
O mar no entanto cintilando
parece a flor de um miosótis
e o olhar de opala das quimeras.

Os ventos passam fustigando
como demônios com chicotes.
Surge uma estrela recordando
o anel lilás dos sacerdotes.
Os ventos passam fustigando
as próprias árvores austeras
e vão aos uivos como um bando
de velocíssimas panteras.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas.
Com suavidades de guitarra,
o mar oscula as verdes ilhas.
O vento traz a cimitarra,
com que cortou jasmins nas ilhas,
e corta as ondas lá da barra.
Como serpentes em rodilhas,
as ondas silvam junto às ilhas
e vão florindo pela barra
ramos de brancas granadilhas.
E o mar parece uma cigarra,
todo rendado de escumilhas.

A noite vem entrando à barra
para dormir aqui no porto.
Parou dos ventos a fanfarra.
O ventos foram para o horto,
dentro do bojo das galeras.

Trazem das ilhas as galeras
flores brilhantes como archotes.
Trazem das ilhas as galeras
cravos como mirra nas anteras
e os lindos ramos das gerberas
e os orientais estefanotes.
Trazem das ilhas as galeras
cerusa em cândidos pacotes,
vinhos em urnas e em crateras
e esses estranhos rapazotes
com o ar de deuses de outras eras.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.

(1930)

Sosígenes Costa. Poesia completa. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2001, p.81-83