quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Ao ler o “arquivo implacável”, respondido por Gustavo Felicíssimo, ri muito por sua sinceridade debochada e peito aberto. Aí está o homem que publicou Outros silêncios, 2011, Procura e outros poemas, 2012, Blues para Marília, 2013 e Desordem, 2015 – todos de poesia. Faz um trabalho incrível, juntamente com sua esposa Gisele Soriano, na pequena, valente, digo mesmo surreal, editora Mondrongo. Confira no site: www.mondrongro.com.br. Ano passado, escrevi para a revista Nabuco sobre GF o seguinte: “Para quem convive com o poeta Gustavo Felicíssimo percebe que os seus versos revelam o homem que ele é. Ímpeto honesto, rara franqueza, vontade de melhora, diálogo aberto.” Corroboro o que eu disse. A vítima agora é ele.          
  

ARQUIVOS IMPLACÁVEIS
À maneira de João Condé

Nome: Gustavo Felicíssimo, mas pode me chamar de O Louco da Mondrongo.

Onde nasceu e a data: sou natural de Marília, uma cidade que nasceu poesia.

É casado (a), tem filhos? Casado pela quinta vez, mas a minha única paixão é a poesia. Já a minha idolatria vai para a minha filha, Flora, a dona do meu cansaço e da minha alegria.

Altura: sou uma centelha de 1,80 m.

Peso: não me peso mais, cansei de iniciar dietas após subir em uma balança.

Número dos sapatos: tenho dois, ambos 41.

Prato preferido, bebida e jogo: o que mais gosto de comer é boceta. De beber é cerveja. Meu jogo é minha vida, uma roleta russa constante.

Gosta de cinema, teatro, quais prefere? Nem cinema nem teatro. Gosto mesmo é da vida. No entanto estou sempre apaixonado pelo filme mais recente que gostei, neste caso é A Coleção Invisível.

Poeta e prosador preferido: o poeta que mais me causa espanto é o Ferreira Gullar, já o Alberto da Cunha Melo é o que mais me causa estranhamento. O meu prosador favorito é um cronista que pouca gente conhece. Triste nação é essa que nunca leu Antônio Lopes. Chega a ser vergonhoso.

Tipo de música e músico preferido: rock and Roll, baby! Que se foda quem não gosta do Marcelo Nova.

Qual pintor preferido? O meu amigo Rafael Pita.

Qual a cor predileta? O verde-azul dos olhos da minha filha.

Quando escreveu seu primeiro texto? Vai fazer pergunta difícil assim lá no inferno.

Dos seus livros publicados qual o preferido e por quê? Blues para Marília, pelas reminiscências, pela emoção nele derramado, e por ter arrancado lágrimas do Sérgio Ricardo, é o meu preferido.

Se pudesse recomeçar a vida o que desejaria ser? Poeta. Mas Deus poderia caprichar um pouquinho mais e me colocar em uma família abastada, para que eu não precisasse bater um prego num mamão.

Seu principal defeito: vá perguntar isso para os meus inimigos e para minhas ex-mulheres.

Sua principal virtude: adorar palavrões.

Coleciona alguma coisa? Histórias. Como aquelas da nossa viagem para Bom Jesus da Lapa. E livros.

Algum hobby? Sempre me dediquei a seduzir mulheres a quem causo uma primeira má impressão.

Uma ou duas grandes emoções em sua vida? Não há emoção maior que a de ver um filho vir ao mundo. Isso basta.

É crente ou ateu? Canalha.

Três livros que mudaram sua vida ou, se não mudaram, mas tocaram fundo: nenhum livro mudou a minha vida, mas vivo a reler tudo de Antônio Lopes, Gullar e Alberto da Cunha Melo.

Se pudesse escolher como gostaria de morrer? Como sonhei um dia. Isso está no poema que segue abaixo:

Morte do Poeta

Talvez eu morra de tanto existir,
talvez um verso me socorra.

E quando passar, é certo,
não seja como um ser abjeto.

Quando eu morrer, à beira mar,
que seja ouvindo o bramido das ondas.

Assim, entre os versos de uma vida
alguma verdade quem sabe se afira.

Quem sabe um poema perdure
e perfure a pele do tempo.

Quem sabe na hora exata o poema
perfeito que não poderei anotar.

Talvez seja um haikai divino,
talvez um soneto fescenino.

O vento deixando no tempo
as palavras trazidas do mar.

Se buscando paz encontrei paisagens,
deixarei uma prece na última tarde.

E montado no dorso do ocaso
levarei, companheira, a saudade.

À filha que tive e muito tenho amado
ficarão os passarinhos nos telhados.

E à mulher que me foi destinada,
um concerto de orquídeas no jardim.

Ficarão as cinzas do que fui
junto aos coqueiros de Olivença.

E junto aos sonhos irrealizados,
aforismos à próxima existência.

Sem que pelas palavras seja revelada,
de mim apenas a natureza restará.

Lembrarão da minha voz grave
contra a sujeira do nosso tempo.

Lembrarão dos passos embriagados
atravessando noites enluaradas.

Se for durante a primavera
terei ouvido a Valsa das Flores.

Terei visto pela última vez
um beija-flor na minha varanda.

Mas se for ao verão, que pena;
não mais as meninas douradas de sol.

Alguns amigos ficarão
como sementes que plantei.

A face leve, embora vivida,
dirá sobre o tempo decorrido.

Em forma etérea olharei meu corpo
confortavelmente estendido na areia.

Direi para mim e para os céus:
como foi bom ter vivido em Ilhéus!


Do livro Blues para Marília:




Do livro Desordem: