domingo, 3 de janeiro de 2016


O DRAMA DE ANGÉLICA
Alvarenga e Ranchinho
 

Ouve meu cântico quase sem ritmo,
Que a voz de um tísico magro esquelético,
Poesia ética em forma esdrúxula,
Feita sem métrica com rima rápida.

Amei Angélica, mulher anêmica,
De cores pálidas e gestos tímidos.
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago.

Em noite frígida, fomos ao Lírico,
Ouvir o músico, pianista célebre.
Soprava o zéfiro, ventinho úmido,
Então Angélica ficou asmática.

Fomos ao médico de muita clínica,
Com muita prática e preço módico.
Depois do inquérito, descobre o clínico
O mal atávico, mal sifilítico.

Mandou-me célere comprar noz-vômica
E ácido cítrico para o seu fígado.
O farmacêutico, mocinho estúpido,
Errou na fórmula, fez despropósito.

Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico,
Corri mui lépido, mais de um quilômetro,
Num bonde elétrico de força múltipla.

O dia cálido, deixou-me tépido,
Achei Angélica já toda trêmula.
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate.

Tomou num fôlego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica,
Caiu no esôfago, deixou-a lívida,
Dando-lhe cólica e morte trágica.

O pai de Angélica, chefe do tráfego,
Homem carnívoro, ficou perplexo.
Por ser estrábico usava óculos,
Um vidro côncavo o outro convexo.

Morreu Angélica de um modo lúgubre,
Moléstia crônica levou-a ao túmulo.

Foi feita a autópsia, todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico.
Fiz-lhe um sarcófago, assaz artístico,
Todo de mármore da cor do ébano,

E sobre o túmulo uma estatística:
Coisa metódica como Os Lusíadas.
E numa lápide paralelepípedo,
Pus esse dístico terno e simbólico:

“Cá jaz Angélica,
Moça hiperbólica,
Beleza Helênica,
Morreu de cólica!”