terça-feira, 7 de junho de 2011
quinta-feira, 2 de junho de 2011
O DESCOBRIDOR DESCOBERTO
Inspecionando lombadas numa livraria de Belo Horizonte, durante o último carnaval, redescobri a poesia de Leonardo Fróes. Não me lembro exatamente do primeiro encontro, mas das visitações que fiz a sua obra reunida — Vertigens (Obra reunida 1968-1998) — quando trabalhei no sebo Berinjela de Salvador, e de que fui incapaz de captar a excelência do poeta, disso não me esqueço. Sou bovinamente lento, daí que o poeta, se algum dia ler estas mal digitadas, irá me perdoar. Devo dizer também que a redescoberta teve a ajuda do notável poeta, tradutor e ensaísta Dirceu Villa http://odemonioamarelo.blogspot.com/ (a quem admiro cada vez mais) ao entrevistar Leonardo Fróes para o site www.germinaliteratura.com.br Neste site, o leitor poderá encontrar um bom material sobre o poeta. Lá na livraria li alguns poemas do Chinês com sono, e, como dizem os doidos, “bateu”! Um dos lados da minha ignorância finalmente iluminou-se. Recentemente, meu querido poeta Ricardo Domeneck http://ricardo-domeneck.blogspot.com/ escreveu um importante post sobre o poeta carioca. Depois desse mea-culpa algo esfarrapado (lembre-se: ignorância não é inocência) quero deter-me um pouco no poema “O observador observado” do citado livro.
Considero que com esse livro Leonardo Fróes alcança uma simplicidade quase prosaica — exata em termos estilísticos e verdadeira em termos conteudísticos — do seu trabalho poético. Os temas ligados ao silêncio, à contemplação amorosa do mundo e afins se refinam mais.
Disse, já não me lembro quem, que a experiência do inefável é impossível de ser expressada, e que é um equívoco a tentativa. Mas poesia é expressão, desimporta qual tipo, mas expressão. Isso me faz pensar como determinados conteúdos devem ser enunciados sem desaguar em vaguidão, hermetismos herméticos nos quais até mesmo iniciados se atolam e emudecem. Há também o problema, comum em nossas letras, de ser catalogados como autores desimportantes, pois não trabalham com a concretude da vida etc etc. Porém, no poema “O observador observado” não é bem o inefável, o indizível que tenta ser expresso. Nos dois versos finais da primeira estrofe e em toda a segunda há en passant um brevíssimo relatório de caráter moral. Neste poema
O OBSERVADOR OBSERVADO
Quando eu me largo, porque achei
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;
e largando de lado, no processo,
todo e qualquer vestígio de quem sou,
lembranças, compromissos ou datas
ou dores que ainda ficam doendo;
quando, hirto, parado, concentrado,
para não assustá-lo, com o animal me confundo,
já sem saber a qual dos dois
pertence a consciência de mim —
— qualquer coisa maior se estabelece
nesta ausência de distinção entre nós;
a glória, a beleza, o alívio,
coesão impessoal da matéria, a eternidade.
se não me engano, Fróes relata um diálogo, uma ação mútua, uma relação de reciprocidade, em que os dois atores — homem e animal — são atuandos atuados. Esta última expressão é minha, eu sei, é feia, mas diz tudo o que desejo. As outras eu retirei do filósofo judaico Martin Buber, no seu Eu e Tu, na única tradução brasileira que conheço do professor Newton Aquiles Von Zuben. Esse diálogo sem que o outro se torne objeto, mas reciprocidade viva na presença é um desses conteúdos dificílimos de manifestar em qualquer linguagem, não só porque é real, mas é uma das esferas da vida em que — quando conseguimos — não transformamos o outro em objeto, não o experienciamos no sentido em que lhe dá Buber. Não quero dizer com isso que somos todos monstros dum egocentrismo infernal, e que “pouca farinha meu pirão primeiro” é a mola mestra da condição humana. Entenda-me: esse evento de relação, no qual dois se tornam um, mas não se diluem, é um dos acontecimentos mais substanciosos da vida humana. As três esferas para as quais endereçamos o diálogo citados por Buber são a natureza (fauna e flora), o homem e o Ser. A última estrofe [...] qualquer coisa maior se estabelece/nesta ausência de distinção entre nós;/a glória, a beleza, o alívio,/coesão impessoal da matéria, a eternidade [...] onde se encontra o desfecho desse diálogo, não por acaso o poeta enumera o que pode ter sucedido e a última palavra é eternidade. O poeta sabe que algo de concreto aconteceu, apesar de não palpável. Contradigo-me? Acho que não. Não é místico nem é sobrenatural. É de outra ordem, mas possui elementos do já citado. Não é apenas a contemplação amorosa do mundo, no caso, um animal, ou de graus dessa contemplação: instante de suspensão do tempo; conexão com a força lírica; instante em que o real, as coisas, se tornam mais nítidas etc. Atuado atuando é a presença da atualidade em diálogo, seu componente metafísico é inegável e que relaciono com um poema de Lúcia Delorme http://www.luciadelorme.blogspot.com/ poeta ainda inédita em livro, que diz o seguinte:
EXÓRDIO
tu
e
silêncio
dificílimo
amor
quem diz tu
escuta
molha-se em luz
dupla
como se descobrisse ou reatasse
o velho diálogo
com
a amendoeira
o amigo
Ser
Os dois, acredito, possuem pontos de contato. Lúcia exorta seus dois temas a serem desenvolvidos, e o “tu” é esse diálogo que tentei demonstrar no poema de Fróes. Para um melhor entendimento do que foi dito remeto à leitura do livro de Martin Buber.
Desconheço na poesia brasileira quando essa temática foi tão bem realizada ou mesmo tocada. Há, poucos, é verdade, poetas metafísicos brasileiros ou que tocam essa linhagem: Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens pai e filho, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima após a conversão ao catolicismo, Drummond e Abgar Renault em alguns momentos, Mário Faustino, Hilda Hilst, Orides Fontela, Marly de Oliveira mais bem realizada até Invocação de Orpheu, Alberto da Cunha Melo principalmente em Dois caminhos e uma oração, Marco Lucchesi, Bruno Tolentino etc. Poucos? Sim, poucos, e até onde pude perceber, nenhum desses tocam a temática do poema de Leonardo Fróes.
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