quarta-feira, 21 de setembro de 2016

EPITALÂMIO
                                                     Para Márcia e Luís Hamilton


Musas latinas, musas gregas, musas
do velho Olimpo e do moderno mundo,
com alto sopro bafejai-me a lira
e dai-lhe o sentimento mais profundo.

Tenho a cumprir nobre missão de bardo,
devo cantar o amor naquele instante
miraculoso, antigo e sempre novo,
de transpassar em luz o peito amante.

Hoje Márcia gentil, neta de Horácio
(poeta ele também, por seus cabelos
de argêntea messe, e ardente coração),
une-se a Luís Hamilton. Só de vê-los,

sinto surdir de oculta fonte o som
de música celeste, que às esferas
sublimes reconduz o ser humano,
e impregna de doçura as próprias feras;

o som da força cósmica, movente
do sol e das estrelas, conhecida,
que o florentino pôs em nobre verso,
e no meu tosco verso eis refletida:

o som do amor, o som do ameno grito
melodioso e santo e grave e jovial,
dramático, dolente, sobre-humano,
trazendo à vida uma razão geral.

Vai, Márcia, sê feliz, e teu esposo
contigo de mãos dadas, tempo afora,
um só sejam os dois, de tal maneira
que pouse a eternidade em cada hora.

Vosso himeneu, dos astros protegido,
seja lição de bem amar, oferta
a quantos, imaturos, desnorteados,
em vão tentam seguir a rota certa.

O sonho em vós se cristaliza e assume
o contorno sensível da existência.
Cada palavra e beijo que trocardes,
dos deuses conterá a pura essência.

Aqui vos deixo. Aqui vossos amigos,
os da alegria ritos celebrando,
despedem-se de vós. Eia, a caminho.
Tende por certo: amar se aprende amando.

Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1988, pp.1048-1049

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Do livro Dicionário amoroso de Salvador, Casarão do Verbo, 2014.

Ba-Vi

                Rivalidade que se perde na noite dos tempos. Qualquer dado, estatística que você for verificar, cuidado. O torcedor é sempre um fanático, e, mais do que óbvio, tenderá para o time dele, isto é, puxará a brasa para sua sardinha.
Algum gaiato espalhou que se macumba ganhasse jogo o Ba-Vi sairia sempre empatado. Eis aí uma grande inverdade. Os orixás também torcem e muito santo faz sua fezinha. Os dois times, Bahia e Vitória, podem estar caindo pela tabela no campeonato brasileiro, e quando conseguem se manter ou chegam lá no susto, mas aí... o Ba-Vi entra em campo. A torcida do time vencedor transformará o domingo à noite num..., num... Calma, estou procurando um termo apropriado, uma palavra que defina a zoeira, a arruaça, a baderna, e o ego superinflado do torcedor. Quem vencer se considerará um time insuperável. Numa situação dessas, escutei um taxista tricolor dizer que “pode vir a seleção que vier, a gente quebra”. É por aí.
O Ba-Vi é sempre superlativo, isto é, ba-víssimo! O ego dos torcedores é maior, bem maior, do que a Fonte Nova, reconstruída, aliás. Dizem que o torcedor do Ba-Vi durante o jogo não se entrega, aguenta o suspense, as falhas ou acertos do juiz? Que nada! Ele enfarta, sai na peixeira e mata a mãe! Os torcedores de um Ba-Vi são como água e óleo. Não há uniformidade possível. Em hipótese alguma um deixará de sacanear o outro, nem em enterro. Pior para o morto.
O ápice desse excesso é um final de campeonato. Não importa qual. Você verá homens duros — que perderiam um braço sem dar um pio — chorarem feito menino buchudo que lhe roubaram o doce. Depois do último apito, a cidade se transforma num grito só.
É homérico e minimalista ao mesmo tempo. Distingo. Durante o jogo é batalha campal. Após a partida, mal a manhã pôs o nariz pra fora da noite, escuto daqui da varanda, os porteiros e moradores detalharem lance a lance em detrimento do perdedor da vez. Se revidar a coisa se agrava, mas nem adianta.  É Já-ia de um lado, Vice-tória do outro, infinitamente. E isso é só o começo. A inventividade para sacanear o perdedor da vez é sem tamanho. Desse modo, é preciso exemplificar os primórdios da rivalidade. O baba.         
                Um baba decide masculinidades e, nos tempos que correm, feminilidades. Evidencia, na aparente descontração, uma guerra íntima de egos, de jogadores de fim de tarde ou finais de semana. Se o Ba-Vi é um épico, o baba é o drama em miniatura. Se num baba você tomou aquele drible vergonhoso, é provável que herde traumas que nem Dr. Freud resolverá. O esportista amador, é claro, não tem o tempo e a dedicação de um profissional, mas mentalmente é um Pelé. Faz lançamentos em profundidade como um Zico. Possui a classe de um Bobô. O melhor, no entanto, é o pós-baba. O cenário? É óbvio: um boteco, com a narração hiperbólica de feitos incomuns. Um gol de canela se transforma em precisão milimétrica; chutão na zaga em barreira intransponível. As metamorfoses são impagáveis, e a assistência nem faz que acredita, pois só escuta a si mesma enquanto se afoga em cerveja e utiliza o tira-gosto como tábua de salvação.
Acima de qualquer suspeita ou pedantismo, o Ba-Vi é uma questão metafísica. Está além de explicações racionais. É feito a vida — radical! Ou é ou é. Não há meio termo. Não há registros de alguém que nasceu Bahia e virou a casaca para o Vitória, ou vice-versa. Não há porque é uma ofensa pessoal, se fizer isso, morre.  


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Do livro inédito Auto da Romaria:

PRIMEIRO ARCO 


Podia ser pior
            e não ter nem nascido.
E desde já eu agradeço
                essa beleza pobre,
o requinte rústico, o calor infernal,
e a ausência de bibliotecas.
                     Se bem pesado,
adquiri um realismo inútil,
bicho que disfarça seus caninos
                                para menos ferir.
                         E de que me serviu o São Francisco?
Imagem num postal,
                           metáfora de rio,
e a fome perigosa dos mergulhos.
Mais de trezentas romarias e esta fé que titubeia
(aí, a culpa é minha).
               E esse menino contínuo, não cede
e, às vezes, extrapola
com ruas poeirentas, caieiras, olarias, campinhos.
Seu excesso de luz que transforma
                                               ou cega,
                                         a depender.
E nem posso tirar daí minhas vergonhas,
alguns amores, que vitórias?, vícios –    
como varrer do coração o coração?