domingo, 24 de agosto de 2014

XIV


     Amo tudo aquilo que é puro, justo e verdadeiro. Amo a troca de anéis ou de alianças entre as criaturas — a linguagem do pacto e não da ruptura — para manter o que é puro, justo e verdadeiro no homem. Amo o encontro e o desencontro, desde que sejam reais. Amo tudo aquilo que é contrato — bárbara palavra — para cumprir todos os seus termos, seja qual for o contrato. Amo a Vida, o valor maior, sósia de Deus.
     Por isso eu me penitencio, se deixei que alguma vez o orgulho fosse maior do que o meu amor. Eu me penitencio, se não amei suficientemente para ter sido amado na mesma medida. Se fui irascível quando deveria ter sido manso e amoroso. Se me encontrei em minhas inquietações, sem permitir, muitas vezes, que o outro ficasse inquietado por elas. Se achei que minha palavra fosse a única merecedora de fé. E se, ao ouvir, só recolhesse aquilo que estivesse mais perto dos meus interesses.
     De tudo isso me penitencio.
   Porém não me penitencio se, ao ter sido orgulhoso, pretendesse dar fortaleza ao meu amor, não permitindo que ele ficasse barateado no mercado dos sentimentos vulgares. Não me penitencio se, ao não amar suficientemente, por alguma impossibilidade, estive realmente preocupado no amor maior. Não me penitencio, se passei por irascível, por não conseguir sustentar uma falsa mansidão. Nem se, inquieto, debalde tentei calcar os ímpetos e os furores da minha intratável natureza. Não me penitencio, se ao exigir fé para minha palavra — ainda que só para minha palavra — desejei com isso manter viva e alta a chama do encontro. Nem por ter falado mais do que ouvido, se quis ao mesmo tempo mostrar que estava com isso disposto a ir além do chão entendimento, falando por todos, e sobretudo pelo outro, através de minha palavra. Nem por ter ouvido somente as coisas que me interessassem: se me encontrava do mesmo modo preparado para colher na palavra do outro a dádiva suprema. Para guardá-la em mim.
   Orgulhoso, irascível, contraditório amante, dono, talvez, da única inquietação do universo, mau ouvinte e predicador sem trégua, não me penitencio: porque jamais quis perder a minha humanidade.

Ângelo Monteiro. O ignorado. São Luis: Resistência Cultural, 2012, p.99-100






terça-feira, 19 de agosto de 2014

ADEMIR DA GUIA


Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

João Cabral de Melo Neto. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.357

terça-feira, 5 de agosto de 2014

ADÉLIA DE CASTRO DEFRONTE A UM JAZIGO PERPÉTUO,
NA IGREJA DA GRAÇA 
  

“Aprendi a esperar algumas coisas:
amigos, certos livros, boas chuvas,
a luz dentro do tempo nas manhãs,
o seu corpo sonhando no meu colo,
os versos invisíveis mais à mão,
a passagem das horas descabidas
em que as harpias seculares guincham
meu nome de batismo como cúmplice.
Aos pés da espera, sentam-se as idades
e a paciência é fruto de outra espera,
tendo o silêncio como ouvinte único.
E cai o gota a gota dos segundos
no olho do real com mais doçura
e entendo que esperar sustenta o mundo.”  

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domingo, 3 de agosto de 2014

2 NOTURNO


Porque o amor não entende
que tudo quer passar,
nunca, nunca consente
a nada o seu lugar.

Planta presa, de alpendre,
sacudindo no ar
braços impenitentes,
tenazes, em lugar

de aceitar que não prende
nada, o amor quer dar
apaixonadamente
laços à luz solar

e é noite de repente.

Bruno Tolentino. As horas de Katharina. Rio de Janeiro: Recorde, 2010, p.28.