segunda-feira, 23 de setembro de 2013

RIMA
A Enrique García-Máiquez

 

Saí sem guarda-chuva, mas chovia
e com má intenção,
cheguei ao carro igual à Gil de Biedma
naquela ocasião

que eterniza na página 157
na primeira edição
d’As pessoas do verbo
com invejável precisão. 

E como todos os problemas,
segundo mostra a experiência, são
gregários, do lugar que surge um
num minuto se forma um batalhão, 

estava ali, fechando a saída
mais tirada do que um baiano em gozação,
uma dessas peruas de encanador, de um bom f...
não o digo por boa educação. 

Procurá-lo nas lojas — cada vez mais retado —,
e ficar de plantão
por quase dez minutos, vê-lo chegar, flertando ao celular,
por fim, ter que agüentar a frustração 

de não ter dito a ele umas tantas coisas,
porque em pleno Dilúvio, e já tão tarde, então
com embaçados óculos me era quase impossível
enxergar o bom f... sim (sem perdão). 

Abrevio o que segue: a marcha ré travada,
os engarrafamentos, sinais, um caminhão
de verduras que quase me esbagaça, e os guardas
perfeitamente piorando a situação. 

Assim, cheguei muito atrasado ao compromisso,
e comigo toda uma inundação.
E não faltou a carta venenosa
que, por não sei que estranha maldição, 

em casos semelhantes
na caixa dos correios nos esperam de antemão.
“Que belo panorama”, já começava a dizer-me.
E de repente, zás, a Inspiração; 

sim, sim, o endeusamento, o furor, a mania,
a loucura divina da qual falou Platão
em umas puras páginas do Fedro
e em outras de Íon.  

E eu embrulhado, ensopado, e, arre!
carrancudo com tanta chateação.
A Musa, porém, não escolhe hora ou lugar,
e aqui estou, terminando feliz minha relação. 

Feliz. Oh! Poesia, poder que nos permite
deitar todas as sombras fora do coração, e  
de um dia que começa tão cacete
fazer uma canção.  

Miguel d’Ors, Hacia otra luz más pura, Editorial Renacimiento, 2003.