quarta-feira, 29 de julho de 2015

NOTA PRELIMINAR

E, aqui, estou de novo, dia a dia,
a xícara bem próxima, hesitando
se era esta mesmo a vida que eu queria.
Digo que sim e que não, mas fumando
a decisão se vai como uma trilha
de fumo azul, sutil, distante,
em minha mão a cinza já demora
(minha vida se iguala à cigarrilha
que se fuma sozinho, interrogante).
O sol, a praça, esse sorriso, fora,
de uma mulher que passa ensimesmada
dizem que sim, talvez, que nada
além de poeira gris e ar azulado... E    
na boca o gosto do café gelado.


Pablo Anadón. El trabajo de las horas (2006)

NOTA PRELIMINAR

Y aquí estoy, nuevamente, todavía,
frente a un pocillo de café, dudando
si era ésta la vida que quería.
Diga que sí o que no, fumando
la decisión se irá como un hilillo
de humo sutil, azul, distante
y quedará en mi mano la ceniza
(mi vida se parece a un cigarrillo
que se consume solo, interrogante).
Afuera, el sol, la plaza, la sonrisa
de una mujer que pasa ensimismada
dicen que sí, tal vez, que nada
sino polvillo gris y aire azulado...
Y en la lengua el sabor del café helado.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

BATACLAN


Também nós passaremos, coronel,
como o teu charuto
como o senhor mesmo
como essa polaca!

É o tempo, com sua taca,
a dar no pobre turista
que entra e sonha a luxúria,
vai depois à lojinha comprar
a coisa de lembrar: o souvenir

             − eu sei, coronel, eu sei,
mas a memória
já te põe no colo,
enrola o dedo em teu bigode,
te sapeca um beijo
de não sei quantos mil-réis!

Beijo que me dá de graça,
a mim que sou o senhor mesmo,
e ela agora essa polaca,
todos nós o teu charuto, coronel:

                                                      essa fumaça.

Wladimir Saldanha. Cacau inventado. Ilhéus: Mondrongo, 2015, p.27

terça-feira, 21 de julho de 2015

"O homem secular já nasce velho."

                   Person Ramos Araújo

segunda-feira, 20 de julho de 2015

"Cumpre que todo homem sirva: que não se discutam, portanto, os serviços de todos aqueles que servem a um só tempo por amor-próprio e por amor."

Louis Lavelle. A consciência de si. Tradução Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2014, p.97

quinta-feira, 16 de julho de 2015

MADRUGADA DOS DIAS DE TODOS OS DIAS


Ela chega de mansinho e me confia (e como os meus pensamentos vão longe) à sua seiva de esplendor. Dia após os dias do interstício de vidros circulares no meu quarto eu retinha o frescor roseado na memória a fortificar os meus pensamentos noutras noites, prenúncio marcado pela oração de agradecimento ao Senhor pela Luz Acolhedora, Luz do Mundo: Vida.

Noites. Guardo aqueles momentos: uma flor no jardim debaixo da minha janela por onde entrava um perfume de fechar os olhos e imaginá-la... A mesa próxima da janela. A luminária: luz para as palavras; um papel solto; um lápis. Um poema escrevia, lia, reescrevia... Perdia-me nas noites métricas terminadas em dias brancos almofadados pelas nuvens-condutoras alçando-me ao poema perfeito do poeta à Vida: frescor do tempo...

Quando o sol chega, aquelas mesmas nuvens alvas almofadadas esvaem-se para o sorriso azul do mundo receber as tardes, quando se despedem do sol e outra noite chega com o brilho do lírio branco marcado no quarto, madrugada adentro de todos os tempos:

Com você as minhas noites são dias;
O silêncio chega e os dias são glórias.
Mesmo sem o verbo, você é toda palavra:
Aurora.

Luiz Bragança de Pina. http://www.andiracomunicacao.com.br/blog/ 




sexta-feira, 10 de julho de 2015

Abaixo, dois poemas de um mestre do fragmento iluminador. Para mim, ele é um dos grandes poetas da poesia contemporânea brasileira. 


APARIÇÃO

O mistério escapou-me por entre os dedos
À maneira de um peixe incandescente –
Era azul como o sonho de um pássaro
E negro como as asas da serpente.
O mistério luziu como um relâmpago,
E depois se ocultou, subitamente. 


HERMANN HESSE

Essa mudez verde que há nas árvores
Insuflou em minh'alma uma brisa eterna --
Qual revoada de voláteis aves
Dissolvendo-se no Azul da minha Espera

Na vida, só é vivo o que arde

Como o incêndio do Sol, ao fim da tarde

Bernardo Souto. O corvo e o colibri, inédito. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O EX-REAL & A ANTIPESSOA 


Desse lado da ponte, o ex-real
à beira da corrente, pende em surto;
a antipessoa, em espera igual,
é o espantalho do seu próprio fruto.

Tomaram a cidade num caudal,
erguendo e desabando viadutos;
abrir corações vivos é plural,
o deslimite é um projeto mútuo. 

Nas retinas da treva, o velho caos
instilam esse dois em duo-amputo;
ossadas da matéria e do verbal
espalham como pétalas e engulho.

O inferno aberto pelos dois é tal
que desse entulho rompe mais entulho
– e a vida, reduzida ao infernal,  
é o seu próprio cadáver insepulto.