sexta-feira, 28 de novembro de 2014

APRENDIZADO


Gritava a alma como grita o porco:
a grande noite não a socorria
e o último eco nascia morto.

Bebia a água e bebia o porto:
navios que atracavam na garganta
e algas recompondo hortos.

Havia a vida e havia o dorso
deitado no silêncio desse dia
e havia ainda o olhar absorto.

Ah!... Havia o corpo...
Havia o corpo, que aprendia
a manejar a vontade e enfim sorria.

Wladimir Saldanha. Culpe o vento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.70



quinta-feira, 20 de novembro de 2014



Cerne claro, cousa
aberta;
na paz da tarde ateia, bran-
co,
o seu incêndio.

Ferreira Gullar. A luta corporal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p.53

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

[Depois de cantar um canto irresistível]

  
Depois de cantar um canto irresistível
aos nautas que há muito não trafegavam
por aqueles mares distantes;
depois de o canto ecoar nos rochedos
de sua ilhota e nos ouvidos das gaivotas
que, impassíveis, se estendiam ao sol,
o último daqueles animais sem destino
atravessou o Mediterrâneo, o Atlântico
e a Baía de Todos os Santos, para emergir
seu corpo perfeito no Porto da Barra,
sob os olhares luminosos dos turistas,
à procura de Odisseu.

Elói Alexandre Dias Martins. 


terça-feira, 4 de novembro de 2014

18. A força que há na luz, não sua ausência,
     pode ser a origem mais secreta
     do escuro em que afundamos de repente:
     por excesso de luz, eis que estou cega,
     por excesso de amor, eu não entendo
     - o farfalhar macio, a crua seda -
     aquilo que nos move, e que ultrapassa
     o limite de tudo o que sabemos.
     Por excesso de dor eu me humanizo,
     eu me faço pequena e tão real,
     nos tornamos serenos, silenciosos,
     tão reais e inocentes e macios,
     que essa luz que não vemos é demais.
     Mesmo ser é um excesso em que caímos.

Marly de Oliveira. Obra poética reunida. São Paulo: Massao Ohno editor, 1989, p.105