sexta-feira, 29 de julho de 2011

Saiu na http://www.verbo21.com.br/ :

UM SONETO DE FERREIRA GULLAR
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Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo — deuses frágeis —
eu colho a ausência que me queima as mãos.


         O soneto acima está no livro A luta corporal, cuja primeira edição é de 1954 e, segundo Manuel Bandeira, figura entre os mais belos da Língua Portuguesa, incluído por ele em uma antologia de sonetos. Difícil discordar. O tema metalinguístico deste soneto não se prende àquele vazio tautológico, que é, penso, falta de assunto crônico de uma parte da poesia brasileira do século XX e início do XXI.

O poema que reflete sobre a própria poesia — e todas as variações caleidoscópicas nesse sentido — quando ocupa um lugar eminente no fazer literário de um país ou época, não é porque os outros assuntos se esgotaram ou são menores e desimportantes — em arte assunto não se esgota, tampouco há assunto desimportante, muda-se a perspectiva, o modelo etc., não estamos falando de hierarquias, então... —, mas, sim, porque a arte pela arte, isto é, o esteticismo, contaminou mais do que devia a cabeça e o espírito dos artífices. Ou é, como aponta Mario Vieira de Mello em Desenvolvimento e cultura, parte intrínseca da índole tupiniquim e que influencia nossa visão de mundo? Esteticismo é entrar em um pseudolabirinto autocriado. Um narciso feio se afogando sem espelho, as espirais no vácuo, não apenas fechado em si mesmo, mas estéril, como se o texto omitisse o mundo. Coisa que não ocorre com esse soneto.

A promessa da posse da linguagem poética parece não se realizar, mas o sujeito poético é compensado pelo fracasso, apesar da cegueira conjunta; a perseguição bipolar entre lucidez e loucura, aquele triz de captura sempre escapando; essa angústia consolada por nova abordagem linguística, contudo, a essência da linguagem jamais é aprisionada. De modo geral, essa busca do poeta denuncia um problema clássico em filosofia, que é a teoria do conhecimento. Como conhecer o objeto? Como captá-lo em sua essência, já que ele é incapturável por excelência? Em poesia, muitas vezes, essa sensação é de uma plenitude angustiada e frustrante. Para a experiência humana toda plenitude é provisória, ela existe, mas somente acontece num átimo. Faço uma ponte, apenas como ilustração, com um trecho d’O prólogo de Le vrai Le vain, de Bruno Tolentino, que está no livro O mundo como idéia: [...] E às vezes/pareceu-me que esse exercício/pousava seguro no vento/para além de todo artifício,/com modos de cume ou de febre. É, praticamente, a mesma temática do soneto de Ferreira Gullar, os dois poetas se deparam com a impossibilidade de encarcerar o sopro das Musas, pois para o poeta carioca pareceu que a linguagem poética se realizava de modo tão intenso e real como algo possível de ser tocado, como se dissesse: “eis aqui a forma ocupando lugar no espaço e que lhes ofereço materialmente”; apesar de ele não negar a base instável desse pouso (vento), e a sensibilidade traiçoeira dos momentos extremados (cume, febre) no momento em que o evento ocorreu. Tão pleno que prescindiria até mesmo do código linguístico utilizado [...] para além de todo artifício [...]. Esse impasse não é típico somente da poesia, mas é próprio da criação artística.  
        
No verso do soneto de Gullar [...]embora/ela me redimisse[...] o vocábulo redimir, remir também possibilita a conotação de adquirir novamente, daí a leitura de consolo, compensação, que fiz. A caça acossada, a linguagem, redime o eu lírico com novas visitas, mas são visitas cegas. Ver não vendo, ter não tendo. Por mais concreta e materialista que seja a temática da poesia brasileira do século XX e início do XXI, quase sempre imanente, a linguagem poética ou não, é uma construção do espírito humano calcada essencialmente no invisível. O que é o símbolo, signo e seus congêneres senão abstrações encarnadas?

         As metáforas com teor surrealizante - [...] catástrofe da aurora [...]; seus pés vislumbro,/ logo nos desvão/das nuvens fogem [...]; colho a ausência que me queima as mãos - conferem ao poema uma finesse imagética formidável, e, juntamente com a fluidez propiciada pelo enjambement, quebra o que poderia soar como um soneto clássico. Clássico não no sentido dado pelos historiadores e teóricos da literatura, mas no de anacronismo engessado, como alguém sonetar hoje à moda de Camões e crer que ao emular o mestre tornar-se-á atemporal. É necessário um cuidado redobrado ao fazer uso das formas fixas nos tempos atuais, pois se corre o perigo do natimortismo. Fenômeno comum em uma parte das letras brasileiras. Obviedades necessárias: forma não é rigidez, apesar de fixar limites, forma é liberdade. Como único exemplo penso em Abgar Renault e nos seus Sonetos antigos, de 1923, não se deixa afetar pelo natimortismo, mesmo tendo utilizado uma grafia aproximada da época do bardo português.    

         Nos dois quartetos desse soneto decassílabo, mas utilizando também o verso sáfico (mais exatamente no 6ª, 12ª e 14ª) há uma sensualidade feminina — o gênero é claro no primeiro verso: possuí-la — e nos remete à posse amorosa da mulher amada. Assim, podemos lê-lo também como um poema de amor, intelectual, é verdade, porém a dona, a fêmea, a amada é a linguagem. O objeto do desejo é percebido, descrito, até mesmo desfrutado, mas impossível de ser aprisionado.      
         
O poeta trabalha com imagens representando o abstrato: aurora, água, e contrapõe com outras, digamos, mais concretas: fonte, muro. Esse dualismo é coroado exemplarmente no par de imagens do 13º verso [...] Vocabulário e corpo [...] e somente neste penúltimo verso o poeta nomeia claramente seu tema, na belíssima antítese final. Não obstante a imaterialidade da caça do poeta, ele limita-se ao campo da imanência, não verticaliza nada, seu espaço de ação é horizontal, pois transcender é estar fora, passar além.     

O produto dessa colheita é nada, mas é um nada ardente. Negativo? Talvez. A beleza se realiza também por essa via.       

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Contra os gênios da internet

Bruno Garschage http://www.brunogarschagen.com/


O desconhecimento sobre determinados conceitos produz confusão e equívocos estridentes. O mínimo que se espera de uma crítica, é que, primeiro, se apresente a definição com que se está a trabalhar e, a partir daí, se apresente os fundamentos do argumento contrário.

Jogar palavras ao vento só faz espalhar as folhas da relva, o que pode inicialmente impressionar os incautos, mas que não resiste ao teste da necessária calma e prudência analítica.

Conservadorismo e liberalismo não são palavras passíveis de serem destacadas de seus significados específicos e exigem um enquadramento adequado. Sem o conhecimento dos instrumentos teóricos básicos, lamento, não há conversa, muito menos debate, só uma mera opinião equivocada, que pode atiçar os gênios da internet, mas que é tão oca como os homens do célebre poema de T. S. Eliot.

Sei bem que a quantidade de gênios no Brasil foi anabolizada pelas redes sociais. Primeiro, dominaram o Orkut, essa expressão máxima da vulgaridade real num espaço virtual; em seguida, promoveram uma invasão bárbara no Facebook e no Twitter. Não há mais idiotas ou estúpidos no Brasil; só gênios; gênios com pedigree e coleira; gênios com carteirinha de sindicato. Quanto mais ignorantes, maior a expressão da sua genialidade individual.

Não há tema que esses gênios da internet não dominem com suprema insipiência e que manifestam com extrema platitude. Não importa para eles conhecer um assunto, mas ter uma opinião histérica a respeito de. Não raro, sua principal fonte de informação e de conhecimento é a opinião de seus camaradas compartilhadas nas redes sociais. Já vi especialistas, de Marx a Mises, que nunca abriram um livro desses autores, mas que escreviam com uma autoridade juramentada.

A dislexia consciente também é uma característica notável porque não se trata de uma doença, mas de uma escolha estratégica de forma a tumultuar a conversa sem ter razão. Quem se atreve ingenuamente a questionar os gênios da internet utilizando os instrumentos vulgares do debate de ideias é bombardeado com questionamentos reiterados daquilo que o interlocutor nunca escreveu e sequer pensou. O objeto específico daquela discussão inicial é completamente soterrado por considerações completamente descabidas, que jogam o assunto para um lado completamente equivocado e desconhecido de antemão.

A desordem, insisto, é estratégica. Sem os instrumentos teóricos básicos adequados, os gênios da internet sabem que não podem se arriscar numa conversação em que são estrangeiros, pois assim seriam obrigados a expor somente sua agressividade gestapiana sem as frases panfletárias utilizadas desordenadamente.

Raramente sou alvo dos gênios da internet porque aprendi a reconhecê-los com a urgência que a minha saúde e sanidade mental exigem. Acredito, como Eric Voegelin afirmou em suas Reflexões Autobiográficas, que aqueles nunca podem ser interlocutores; no máximo, objetos de estudo. Este texto é um alerta às pessoas de boa-fé: é impossível um "debate de ideias" com a reincarnação da barbárie.

Os gênios da internet não podem ser ignorados, porque são perigosos e astutos; devem ser combatidos com os instrumentos que a civilização nos legou em forma de tradição, nunca com as armas que eles escolhem, porque senão rapidamente somos envolvidos por uma espiral inebriante que entorpece o raciocínio e desgasta o espírito. Num eventual encontro verbal com eles, traga sempre a discussão para o seu terreno, ignorando a perturbação que tentam impingir à conversa.  
É um erro fatal se deixar levar pelo turbilhão de salitre e breu com aparência de discussão. Quando o gênio da internet tentar puxar a discussão para a trincheira dele, ignore essa tentativa e continue no seu caminho, reto e prudente. Siga apresentando a substância de suas ideias e expondo, violentamente se necessário, a inconsistência e o perigo daquilo que o seu interlocutor destila com a saliva escorrendo pelos caninos.

Lembre-se sempre que os gênios da internet são uma minoria estridente com aparência de maioria dominante. Sua necessidade de atenção e a vacuidade daquilo que manifestam como suposto pensamento são o seu calcanhar de Aquiles. Quanto mais alto o grito, maior a estupidez; quanto mais agressivo o comportamento, mais raso o pensamento; quanto mais alto o nível de intolerância, maior o grau de ignorância.

Os instrumentos mais eficazes contra os gênios da internet são essa tradição da civilização a que damos o nome de ironia, sarcasmo, sátira, zombaria. Os gênios da internet são mal-humorados. Mesmo quando afirmam o contrário, ratificam o mau humor. O uso adequado daqueles instrumentos derrubam um por um como pinos de um boliche histórico.

Quando se deparar com um desses gênios da internet, caro leitor, lembre-se sempre: o bom humor é o que nos salva.