terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um texto de Ronald Robson (guardem este nome) http://fantasiaexata.wordpress.com/  sobre o livro Dois de Érico Nogueira http://ericonogueira.blogspot.com/  Pretendo publicar outros textos dele por aqui.

Nota sobre “Dois”, de Érico Nogueira
por Ronald Robson

Dois (2010, É Realizações), mais recente livro do poeta paulista Érico Nogueira, que rápido alcança paridade aos grandes da literatura nacional, é ponto de torção do arco de uma lira que, posta em circulação com O livro de Scardanelli (2008, É Realizações), o faz partícipe das duas linhas mestras de nossas letras: a dos grandes arquitetos do verso, de Manuel Botelho de Oliveira a Bruno Tolentino, e a dos saltadores de abismos rumo a Deus, de Cruz e Sousa a Ângelo Monteiro.
O que se encontra em Dois são registros de uma “paidéia” muito pessoal, por dizer respeito à pedagogia que o homem Érico se impôs: buscar “Roma” (a salvação, a luz divina, a veracidade da existência), ainda que ela seja “este poço / de secreções e beijos de granito”. Pois “viver o que nos mata todos vivem, / saber vivê-lo, sim, é ave rara”. No livro anterior, como Scardanelli (pseudônimo da loucura de Hölderlin), Érico dramatizara a idéia de que, em poesia, a experiência mais particular só pode ser expressa por meio do artificialismo congênito à verdadeira arte – e o realismo, a ele como a Auerbach, é o que de mais alto se constrói sobre uma pira em que queimam o real e o imaginado.
Tal tema ainda se apresenta em Dois, todavia como parte de uma busca: a apropriação de si mesmo, que é apropriação dos grandes temas da poesia ocidental por meio de experimento sutil, atualíssimo, da potencialidade dos metros clássicos. Veja-se que na seção “Deu Branco”, que narra em nove poemas uma viagem a Roma, o poeta dá ao alexandrino ritmo que nunca assumiu em língua portuguesa: “Roma, enfim – chego bem, só que tarde demais; / estátua e praça e tudo não como o esperado / (o mundo é tão certinho na fotografia); / ouço ‘Deus mora ali, bem ali, logo além’, / mas, olhando o tamanho da fila, meu Deus, / é bom ficar de fora; um giro na cidade”.
O preceito de Goethe de que o artista só alcança maestria por demonstrar destreza nas limitações naturais à sua arte é norte ético a Érico Nogueira. Por isso importa-lhe a “cópula impossível” entre pensamento e realidade, “o tônus e o tino”, instinto e intelecto, sexo e Deus, ritmo e sentido. “Porque o contentamento / não há de ser luxúria ou celibato”, Érico Nogueira tem olhos para a unidade que fundamenta todas as dualidades da existência, por saber que “a ocasião se colhe como a uva / que a chuva não encharca, e o sol não tosta”.
Espanta o domínio que Érico, conhecedor do hexâmetro grego (ele traduz Teócrito em seu doutorado) aos ritmos ibéricos, estabelece sobre todos os metros em senhorio cabal, com a presença, às vezes, de um riso indisfarçável, remate da autoconsciência de quem cria. Sua rima toante tem a sutileza do silêncio (“unir” / “aqui”; “par” / “Há”; “jogo” / “corpo”; “gosto” / “vôo”). Talvez porque sua busca por si, por Roma e pela perícia em poesia só possa, afinal, ser apreendida em sotto voce: “Quando o dia se apaga, dentro e fora, / e a luz se adensa em nódoas pelo breu, / alguém intui que algo se demora / cujo nome, se houve, se perdeu”.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Texto do meu caro amigo Caius Marcellus, artífice refinadíssimo. Seu blog: ht/tp://clausclars.blogspot.com/   

Andrea Mantegna

faz tempo qu' eu não revisitava Mantegna com tanta atenção . e Mantegna foi um daqueles soberbos desenhadores do Quattrocento que me formaram . seu traço incisivo, seu modelado escultórico nunca saíram de minha cabeça . aliás, confesso que nunca resolvi [se fosse preciso resolver...] o conflito entre uma tendência a um desenho conclusivo, formalmente perfeito [do latim perfectus, i.e., acabado, consumado] e um desenho "impressionista", como o desenho Muromachi, com sua notação tão minimalista quanto sugestiva . mas parece que o equilíbrio pode se dar numa alternância dos dois modos, quando levo a cabo uma sua transposição em termos pictóricos, como alternâncias no foco duma câmera fotográfica, sem contudo indicar instantes diferentes.

Mantegna, il principe dei pittori, está na origem do classicismo ideológico, sua faceta menos atraente a meus olhos . é dele que promana aquele esforço por figurar, com precisão arqueológica, arquiteturas, objetos e costumes da Antiguidade, uma tendência que se desdobra tanto no classicismo francês, com suas tipologias rigidamente fixadas, quanto nos filmes hollywoodianos sobre o mundo greco-romano, profusamente povoados de referências antigas cujo espírito parece ter abandonado aqueles cenários pouco antes do início das filmagens.

mas é dele igualmente aquele amor pela plástica que torna suas pinturas, mais do que uma festa para o olho, uma festa para o tato . Mantegna desenhava esculpindo, e sua pintura está tão próxima de altos e baixos relevos [que o pintor não deixou de figurar como citações cultas em obras maiores] quanto de grupos escultóricos dispostos num espaço cuidadosamente construído para acolhê-los, depois de apropriadamente policromados [a "Cucifixão" do políptico de San Zeno ou o "São Sebastião" de Viena o demonstram à saciedade].

para mim, contudo, a mais notável qualidade de Mantegna é essa: sua pintura não esconde a técnica . pelo contrário, essa pintura ostenta sua técnica e, com ela, o disegno que lhe serve de ossatura, as operações mentais que a formaram . tudo em Mantegna tem sua perfeita circunscrição, seus limites espaciais, sua medida naquele espaço inventado, e nisso seu modus operandi se manifesta mesmo na obra acabada . aliás, essa mise-en-valeur da artisticidade é uma qualidade dos artistas de seu tempo de um modo geral, mas que no mestre mantuano torna-se um princípio seminal.