quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Banner do lançamento de Chuva secreta, da minha mulher toda música, Állex Leilla.
Bienal do Livro da Bahia, 2013.
Stand da editora Casarão do Verbo,
dia 9 de outubro, às 19h.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

RIMA
A Enrique García-Máiquez

 

Saí sem guarda-chuva, mas chovia
e com má intenção,
cheguei ao carro igual à Gil de Biedma
naquela ocasião

que eterniza na página 157
na primeira edição
d’As pessoas do verbo
com invejável precisão. 

E como todos os problemas,
segundo mostra a experiência, são
gregários, do lugar que surge um
num minuto se forma um batalhão, 

estava ali, fechando a saída
mais tirada do que um baiano em gozação,
uma dessas peruas de encanador, de um bom f...
não o digo por boa educação. 

Procurá-lo nas lojas — cada vez mais retado —,
e ficar de plantão
por quase dez minutos, vê-lo chegar, flertando ao celular,
por fim, ter que agüentar a frustração 

de não ter dito a ele umas tantas coisas,
porque em pleno Dilúvio, e já tão tarde, então
com embaçados óculos me era quase impossível
enxergar o bom f... sim (sem perdão). 

Abrevio o que segue: a marcha ré travada,
os engarrafamentos, sinais, um caminhão
de verduras que quase me esbagaça, e os guardas
perfeitamente piorando a situação. 

Assim, cheguei muito atrasado ao compromisso,
e comigo toda uma inundação.
E não faltou a carta venenosa
que, por não sei que estranha maldição, 

em casos semelhantes
na caixa dos correios nos esperam de antemão.
“Que belo panorama”, já começava a dizer-me.
E de repente, zás, a Inspiração; 

sim, sim, o endeusamento, o furor, a mania,
a loucura divina da qual falou Platão
em umas puras páginas do Fedro
e em outras de Íon.  

E eu embrulhado, ensopado, e, arre!
carrancudo com tanta chateação.
A Musa, porém, não escolhe hora ou lugar,
e aqui estou, terminando feliz minha relação. 

Feliz. Oh! Poesia, poder que nos permite
deitar todas as sombras fora do coração, e  
de um dia que começa tão cacete
fazer uma canção.  

Miguel d’Ors, Hacia otra luz más pura, Editorial Renacimiento, 2003.

domingo, 16 de junho de 2013

Cecília Meireles

A última entrevista de Cecília Meireles

A escritora morreu alguns meses depois de ter concedido o depoimento ao jornalista Pedro Bloch, em maio de 1964
“Tenho um vício terrível” — me confessa Cecília Meireles, com ar de quem acumulou setenta pecados capitais. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença.” “Em pequena (eu era uma menina secreta, quieta, olhando muito as coisas, sonhando) tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de pureza, sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das cores e inventava o meu mundo. Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei gente. Há quem pense que meu isolamento, meu modo de estar só (quem sabe se é porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em que até se namora de uma ilha pra outra?), é distância quando, na realidade, é a minha maneira de me deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas florestas.”

Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília:

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído…
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

Cecília Meireles: Minha primeira escola foi a Estácio de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me formei. Olhando para trás me sinto uma criança extremamente poética. Em casa de meu padrinho, Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e observando-a, via estátuas, pinturas, coleções de pequeninos, objetos e leques em vitrinas, coisas que me levaram a fazer o “Inventário Lírico”.

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Cecília Meireles: Vovó era uma criatura extraordinária. Ex­tremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: “Por quem você está rezando?” “Por todas as pessoas que sofrem.” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

 Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
 
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles: Uma das coisas que mais me encantavam em minha vida de infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me debruçava no mistério das palavras e do mundo. Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar minha ignorância.

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Cecília Meireles: Terminada a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

Cecília Meireles: Você sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta comunicar?

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Cecília Meireles: Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem pisar num cinema, mas não posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende?

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles: Casei com vinte anos. Tenho três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não está fechada. Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma bondade comovente mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua extraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses, ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez. Depois… nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados.

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Cecília Meireles: Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. Aos poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. Acho linda a continuidade humana através da poesia. Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário.

Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

Cecília Meireles: Mas comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia comigo mesma: “Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu servi de elo entre os dois. A mim eles escreveram!” Me fez um bem enorme aquele meu Natal atrasado!

Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.

Cecília Meireles: Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há um certa dose de vaidade. “In­ventei. É meu”. O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu! No “Romanceiro do Rio de Ja­neiro”, que estou preparando para o IV Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época.

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…

Cecília Meireles: Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Cecília Meireles: Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. “Solombra”, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.

Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

Cecília Meireles: Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas. Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano. Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires. O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem à tona pelas escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias … Visitar Nazaré, os lugares santos! A Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de gravuras. Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa de algo, chá-da-Índia, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à Índia e a Portugal.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles: A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram em mil pedaços.

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Cecília Meireles: Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos.
Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.

Cecília Meireles: Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles: Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a renunciar. Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo.

E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará…

Cecília Meireles: A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Cecília Meireles: A arte abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é? A arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gente faz coisas com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa.

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Cecília Meireles: Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Cecília Meireles: Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.

Em prosa Cecília dá lições de grandeza. Vejam como descreve o barquinho Elenita: “parece uma nuvenzinha a correr por um espelho”. E o “Anjo da Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com certo ar de culpa”. “Chuva com Lembranças”: “Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam”. Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico”.

Cecília Meireles: Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz.

Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz. E conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.

Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”. “Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós. é só luz.

Entrevista publicada na revista “Manchete”, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.

Catei aqui: http://www.revistabula.com/496-a-ultima-entrevista-de-cecilia-meireles/
 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Quatro poemas de Bernardo Souto: 
 

SALOMÃO
 
com tijolos feitos de nada
erigi templos e palácios
 
num tempo anterior às horas
escrevi um breve epitáfio
 
só agora compreendo
o estranho idioma dos pássaros

 

HADES 


por muito tempo fitei a Morte:
murmurava-me palavras claras
num idioma desconhecido

sua intangível proximidade
sempre me nutria de medo
remorso
e asco

branca tarântula
feita de abismo

é Ela
que ata as duas pontas da vida

é Ela
a inexistente fronteira
que separa a noite do dia

por muito tempo fitei a Morte

  

BLAISE PASCAL 
 
nunca
ninguém
jamais
será escutado
 
surdo é o grito
dos afogados 

Bernardo Souto, Teatro de sombras, Ed. Moinhos de vento, 2011. 
 

LAO-TSÉ
 
nos confins do Infinito
encontra-se a Fonte
 
jamais poderás ouvi-La
jamais
poderás vê-La
 
aquele que não sentir esta Fonte
será aniquilado
pela mudez das estrelas 

Este último na revista: http://www.leiatom.com/?p=45

 

 
 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Acabou de chegar da Alemanha, uma tradução do conto "Cicerone cego", que está em meu livro Ao longo da linha amarela. Agradeço ao meu caro poeta, tradutor e ensaísta Ricardo Domeneck pela indicação. Ao Timo Berger pela antologia com outros autores (entre eles Michel Laub, Adriana Lisboa, Ricardo Lísias, Katherine Funke, Daniel Galera, Joca Reiner Terron etc.), e pela tradução de Odile Kennel.

Surrealismo é isso aí. Não tente entender, pois não quer dizer nada.

A UMA DEUSA
(Atribuído ao poeta Luís Lisboa, do Maranhão)

Tu és o quelso do pental ganírio
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,
De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbáceas do pental perônio.

José Augusto Fernandes, Dicionário de rimas da Língua Portuguesa, Ed. Record, 1984.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O SILÊNCIO


E só depois da terceira noite
no recesso das nuvens
ao abrigo de torrentes e burburinhos,
principiareis a ouvir o silêncio.
Não o rumor de insetos contra os vidros do ar,
nem o dos talos da planta crescendo.
Nem mesmo a bulha mínima
de rocio a escorrer em pétalas.
Mas leve aragem da mudez que precede
ao balbucio do pensamento.
Obscura nostalgia de acorde
em fios tensos de violino
antes de feri-los o arco.
Um apenas prenúncio de passos
de amorosos passos divinos
caminhando no tempo sobre impalpáveis areias
e musgos tácitos
e brancas pedras votivas.
Um como fugir do sangue
à hora da almejada entrevista.
O abandono do corpo -- não à atração
                                             telúrica --
à transcendência da natureza.
E o coração da criatura pulsando uníssono
de encontro ao vivo coração do Criador.

Henriqueta Lisboa, A casa de pedra, poemas escolhidos. Ed. Ática, 1979, p.62    

domingo, 14 de abril de 2013

37.

E um macio de sombra pela frente
me leva a meditar no irrevelado
que há no amor e nas coisas e no quanto
o que não se revela é necessário.
Pois só o que é evidente é que se extingue,
por força não do excesso, mas do uso,
do uso que me informa e ao meu hábito,
hábito que empobrece o que confundo,
pois pode o amor tranqüilo uma aparência
ganhar de tédio, enquanto que em verdade
tanto mais calmo quanto mais profundo
é o rio ininterrupto no seu curso,
todo claro por fora, mas por dentro
cada vez mais distante e mais obscuro.

Marly de Oliveira, Obra poética reunida, Massao Ohno Editor, 1989, p.115

quarta-feira, 27 de março de 2013

Dois poemas de Érico Nogueira 

1.

Entre as ruínas, ai, de arco e busto,
eu busco ouvir além do meio físico:
ouvir o que se entrega a um alto custo
a quem, como eu, é carne e pouco espírito.

Se me surgisse em riste ou em decúbito
a via donde vim e vou com gosto,
meu coração tão flácido, de súbito,
levantaria sangue para o vôo.

Ou seja: o espírito, que tenho pouco,
e vou perdendo quanto mais existo,
onde estará, se Roma é este poço
de secreções e beijos de granito?

4.

Instrui — a mente não —, instrui o instinto
na língua, se sutil, mais carregada:
em que modulações do tom mais limpo,
cílios da pálpebra mais comportada,
trejeitos da cabeça mais centrada,
têm intenções, têm múltiplo sentido:

conforme esteja quem conforme a lua
amplia ou diminui o que te mostra,
ajeita a tua mão à sua luva
e ataca, ou pela frente, ou pelas costas.
A ocasião se colhe como a uva
que a chuva não encharca, e o sol não tosta.

Érico Nogueira, Dois, É Realizações, 2010, p.23,26.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Soneto de António Ferreira (1528-1569), poeta português. A grafia é a encontrada na edição indicada abaixo.
 
3
 
    Despojo triste, corpo mal nascido,
escura prisão, e peso grave,
quando, rota a cadeia, e volta a chave,
me verei de ti solto, e bem remido?
 
    Quando, c’o esprito pronto, aos céus erguido,
(depois que est’alma em lágrimas bem lave)
batendo as asas, como ligeria ave,
irei aos céus buscar meu bem perdido?
 
    Triste sombra mortal, e vã figura
do que já fui, uns dias só sostida
daquele esprito por quem cá vivia,
 
    quem te detém nesta prisão tão dura?
Não viste a clara luz, a santa guia,
que te lá chama à verdadeira vida?
 
António Ferreira, Poemas lusitanos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2000,  p.80.  

segunda-feira, 18 de março de 2013


O ENTE AMADO DE EMILIANO
 

Teu cavalo morto
Renascerá principalmente
Com o verão nas árvores
 
E não estarás oculto
Como um salteador de estradas
Ou um solitário irredimível.
 
Teu cavalo morto
Renascerá após a agonia dos bois
Nos currais ensolarados
 
E saberás distinguir
Essas questões difíceis que propõem
A qualquer homem vivo.
 
Teu cavalo morto
Renascerá à semelhança de um deus
Deslumbrante e amoroso.
 
Envelhecerás sozinho e triste
Até que o ar sufoque os corvos e os livros,
Comprimindo a cruz ao sol.
 
Teu cavalo morto
Renascerá como nunca pensaste,
E logo ficarás tranqüilo.
 
(1968)
 
José Carlos Targino. Cadernos de poesia nº8. Recife: Fundarpe, 1997, p.18.  

 

 

sexta-feira, 15 de março de 2013


Topografia do burgo de Olinda à distância de quatro séculos, a partir de um telescópio montado no campanário da Igreja da Sé, com pedidos de desculpas aos mapas e teses dos geógrafos, bem como ao teodolito e demais instrumentos de trabalho dos senhores arquitetos e engenheiros. 
 
É um volume de sonho e luz aberto
nas prateleiras do ar,
aos olhos revelando um mundo impresso
em água e eternidade, em brisa e mar.
 
E encanto antes de tudo, só encanto
para quem a conheça:
e, sobretudo, o medo que esse encanto
um instante após nascer desapareça.
 
Evadida do tempo, em nós desliza
e fica, como a lembro,
à flor do mar, dourada pela brisa
e o ouro dos cajueiros de setembro.
 
Seria, na lembrança, outra paisagem
ao mundo acrescentada,
não fosse o mangue que enferruja a aragem
na qual, por ser encanto, está pousada.
 
Rasurando a memória, se folheio
as lembranças extintas,
evita, silenciosa, os meus receios
e altera o mundo sem que o mundo sinta.
 
O sonho extinto em quem, sonhando, veja
mesmo extinto não finda
que o olhar sonha quando a lembra, acesa,
e quando a esquece sonha mais ainda.
 
Jaci Bezerra. Linha d’água, 2007. Cia Editora de Pernambuco.  

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Quien se queda mucho consigo mismo, se envilece.

Antonio Porchia, Voces reunidas, 2006, p.50.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013


9.2
 
Manhã luminosa,
pura, calma, azul!
Solidão da rosa
sob o céu azul.
 
Livre, aberto, nítido,
tudo que se dar.
Mas, sensato e tímido,
desvias o olhar.
 
Tudo está maduro
para as tuas mãos.
No entanto, inseguro,
recolhes as mãos.
 
Pródiga, serena
(nem boa, nem má),
vida clara e plena
— quem a colherá?
 
Marco Catalão, Antes de amanhã, LivroPonto, 2008, p.83.
 
 
O VÍRUS
 
Meia-noite. Depois de um dia inteiro
de trabalho árduo, o que eu não esperava
ocorre: o mouse de repente trava.
Engasgo. Sinto um calafrio ligeiro.
 
Digo à tela: “Era só o que me faltava...”
Tento reiniciar. Em vão. Primeiro
com método, depois com desespero,
faço tudo o que posso, mas na oitava
 
tentativa desisto. Meus suspiros
são inúteis. Perdi de uma só vez
tudo o que tinha feito em mais de um mês.
 
A morte é esse dissimulado vírus:
se instala em nosso software, secreta,
e antes que a percebamos nos deleta!
 
Marco Catalão, O cânone acidental,É realizações, 2009, p.49.
 

 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

SONETO
 
 
O silêncio madruga nos ponteiros.
Sinto a força dos astros repartida
em nosso ser à proporção da forma
e fundo permutados nos sentidos.
 
 
O retiro emergido neste espaço
é o equilíbrio de exata proporção.
Um horizonte vasto se revela
além dos muros físicos do mundo.

E o pensamento logo se emotiva
ao contemplar a sensação da vida
em completude plena de existência,

que adensa o instante desta solitude.
Mas vem o sono, imensa paz, enquanto
a noite decompõe-se lentamente.

Claudio Sousa Pereira


 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Só o dom do pó
Junto a essas águas basta,
E o chacoalhar dos ossos
Nas correntes fundas
Pra que saibam, Arquita, qual foi o nosso fim.

Nessas paragens, lembramos a morada antiga,
A abóbada celeste, o arco pleno e distante.
Mas aqui só sentimos o que já foi,
E o que vemos, não existe;
Nossa memória, o Letes
Só dissolveu uma parte,
E pela doçura do vivido,
Nosso cerne anseia ainda.

Sim, faríamos tudo para voltar,
Inda que como escravos,
Carregando fardos dia a dia,
E eu diria tudo o que calei,
Sentiria tudo o que adiei.

Já sem corpos, inda amamos,
Mas aqui no Orco
As sombras não se tocam.
Ah, ter cruzado o portal terrível,
Velhos ou jovens, felizes ou infelizes,
Encontrando a sepultura
Entre os bramidos e os esguichos do sal, sem poeta
Para grafar na face móvel das águas
Um dístico em nosso nome —
Sem consolo ou mão amada.

Vai, manda dizer, Arquita,
Que estamos aqui
E ansiamos pela voz dos amigos.

Lawrence Salaberry, Engano especular, Ed. É Realizações, 2012, p.8-9
Mais do e sobre o poeta aqui:
http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/seis-poemas/


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


Como se o nada fosse um dom perfeito
habitamos, em vão, um vago esboço
de onde nos surge a tela e os seus remorsos —
dois olhos mal despertos se entreabrindo. 
 
Nada há mais a dizer — pois tudo é espanto —
mas há impressões que duram a vida toda.
E, mesmo assim, vagamos pela noite,
de repente, cansados de infinito,
 
habitantes dos sonhos e das pragas,
nada sabendo sobre o tempo... Toda
palavra se renova em seu ofício,
 
todo verso vasculha velhas cinzas.
Como quem redescobre antigas chagas,
olhamo-nos como quem olha um berço.
 
Silvério Duque, A pele de Esaú, Ed. Via Litterarum, 2010, p.27

 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013


ESTA NOITE
 
Esta noite, em meu sonho (a multidão
ovacionava o rei; um voo de ave
em movimento esdrúxulo; o conclave
dos cardeais de abril e seu jargão),
 
eu estava desperto, e minha mão
procurava no escuro a obscura chave
que abrisse a porta, resolvesse o enclave
(mesmo que não houvesse solução) —
 
e eu era outro, sem sê-lo, nem melhor,
nem eu mesmo, mas outro, mas Alguém,
num janeiro, entre os hunos — e uma flor
 
na lapela do equívoco (que importa?). —
Esta noite, em meu sonho, como quem
se esquiva ou atravessa alguma porta.
 
Renato Suttana. Conversa de espantalhos, Editora Sol Negro, 2012. p.57
 
Livros e poemas de Renato Suttana aqui: http://www.arquivors.com/