segunda-feira, 28 de setembro de 2015

ELISABETE DESCANSANDO NA LUZ



Na sua alma onde Deus começa
e o amor, sendo pleno, é mais que um vício

aceitando a ternura e o desperdício
minha alma na sua alma se completa.

E somos, sendo dois, uma só casa
sabendo às vezes e, às vezes, sem saber

que é só nossa a aventura de morrer
unindo e desunindo as nossas brasas.

Há mapas nessa casa, mapas, ilhas
e à margem de impossíveis horizontes

um verão que inventando maravilhas
em nossa carne canta sem ser fonte.

Por isso a noite em nós nunca é escura
e a nossa nudez é a nossa roupa:

se em seu corpo soletro coisas puras
é porque sei de cor a sua boca.

Casa de mim, constelação de espantos,
mar que soluça em busca do infinito,

nas suas águas, quanto mais morro, canto
e quanto mais canto mais me ressuscito. 

Jaci Bezerra. Linha d'água. Recife: CEPE, 2007, p.36

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A PALAVRA BRASIL 


A palavra Brasil é a mais difícil,
não há jeito de usá-la sem perder-se,
sua vivência sempre aquém da fala,
sua pronúncia verde nos corrompe.

Já sei como impedir o falso azul,
enraizado no som do seu vernáculo.
Como não suspeitar do movediço
de um nome que nomeia o seu desgaste?

A palavra Brasil nos deixa nus –   
história e continente de um vocábulo,
e para convocarmos o que amamos
no seu étimo falta a outra parte.  

quarta-feira, 23 de setembro de 2015


Se me deixasses
se um pouco de Tua mão me deixasses
eu não acreditaria nem em minha própria sombra
eu me converteria em minha própria sombra
plena de teorias luminosas sobre si mesma
e o sol e blá blá blá se me deixasses
eu me creria o sistema solar em pessoa
criado por eu mesmo do nada
em um ato de rara inteligência
e contaria minha história por bares e praças públicas
e até as crianças me saberiam um idiota
se um pouco de Tua mão me deixasses.

José Miguel Ibáñez Langlois

FE

Si me dejaras 
si un poco de Tu mano me dejaras 
yo no creería ni en mi propia sombra 
yo me convertiría en mi propia sombra 
llena de teorías luminosas sobre sí misma 
y el sol y bla la lá si me dejaras 
yo me creería el sistema solar en persona 
creado por mí mismo de la nada 
en un acto de rara inteligencia 
y contaría mi historia por bares y jardines públicos 
y hasta los niños me sabrían idiota 
si un poco de Tu mano me dejaras. 

[De Poemas dogmáticos II]



sábado, 19 de setembro de 2015

No aniversário dela, um pequeno presente para Luciane Amato, desentranhado de sua correspondência.  

12 –


Agora, Luciane,
o luto é profundo,
e desses enxames
que alegram o mundo,

agora, podemos
fruir juntamente.
Milagre do tempo
– aquele presente

ganhamos agora.
Aquele perdão
aceito sem hora;
é que a gratidão

não envelhece.
Podemos amar
o que tão cegos
não amamos lá.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

CANCIÓN 6 


Pensaba el niño, en la triste
tarde de un día lluvioso,
que al pie de aquel arco iris
se encontraría un tesoro.

Quién sabe, si tras la muerte,
no encontraremos nosotros
que nuestras dudas y lágrimas
eran monedas de oro.

José Mateos. Reunión - Poesía, 1995-2005. Granada: La Veleta, 2006, p.98
http://josemateos.es/

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A sutilíssima arte de Davi Ribeiro. Que não tem blog, e é, pessoalmente, como seus haicais -- quase só silêncio.    


Pequena ave canta:
o silêncio em sucessão
vem cobrir o mundo.

***

O místico olha,
ante o tabuleiro de xadrez,
o norte do cosmos.

***

Na casa acanhada,
um rádio ligado alto:
canção para lua.

***

Fixado à cruz,
o Bom Ladrão suplica
a aurora celeste.

***

A Filha mais
inocente faz perguntas
truístas aos anjos.

***

Anda e mastiga um
biscoito, o velho feliz:
caminhos de pó.

***

Em quase lamento,
a criança imita um
carro de corrida.

***

Por trás da quitanda,
humilde a dama vende e
mendiga em conjunto.

***

Rua à noite, densa:
as baratas dão passagem
para pés mais largos.

***

Em boa forma, a
fumaça de café segue
ao teto: inverno.


 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Quando vejo nas gazetas as queixas dos jovens poetas, inconformados porque não têm editores nem leitores, ou críticos dispostos a reconhecer os seus versos ou não-versos, lembro-me do exemplo de Manuel Bandeira. Só perto dos sessenta anos o grande poeta conseguiu editores para os seus livros. Saiu do seu bolso o dinheiro para imprimir A cinza das horas (1917), sua estréia aos 31 anos. O Carnaval (1919), foi custeado pelo seu pai, que morreu pouco depois. Só uma vez logrou um editor, nesses tempos em que, sem o saber, estava mudando a poesia brasileira com a sua voz altiva e pungente, irônica e terna, solitária e solidária -- com a sua palavra fraterna. Amigo de seu tio, o acadêmico e ensaísta Souza Bandeira, o também acadêmico e gramático Laudelino Freire publicou, num volume, Poesias (1924), seus três primeiros livros (A cinza das horas, Carnaval e Ritmo dissoluto). Foi só. Já cinqüentão, e candidato à Academia, pagou do seu bolso a primeira edição das Poesias completas. Também os convites para colaborar nos grandes jornais só vieram quando o poeta se aproximava dos sessenta anos. Uma vez, ao saber que certo jovem poeta vendia aos jornais as suas primícias líricas, desabafou comigo: "Se quando eu era moço ousasse subir a escada de um jornal para vender um poema, seria expulso da redação a pontapés." Sozinho no mundo, já que sua única irmã também fora levada pela morte, o poeta passou muitos anos traduzindo biografias e romances policiais para viver, e escrevendo crônicas para jornais que só pagavam aos pingos. 

Lêdo Ivo. Teoria e celebração, ensaios. São Paulo: Duas cidades, 1976, p.87, 88.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

I. Dois cavalos


O herói tombou: e logo na medula
seus cavalos sentiam a desdita,
enquanto a mão - tão douta, tão exata -
os deixava, dois barcos, à deriva.

Ao grito estrídulo de escudo e espada,
os animais choraram sem destreza;
sem consolo, brutos, indomáveis,
renegaram, pisando, o rés-do-chão.

No que Zeus (tão cativo da beleza)
sentiu pequeno o coração, maciço, e
"Meus cavalos, por que chorar, por que",
falou, "se lei mortal vos não oprime?"

Mas os cavalos, meio por prazer,
cheios de sombra e pó nas ferraduras,
insistiram no sangue, pele e músculos
da beleza mortal, delícia e logro.

II. Le Réfus

Passam como sombra, alguns; a outros chega
o dia da grande escolha, irrepetível,
do "Sim" ou do "Não", sem recurso nem volta.

A maioria diz "Sim", a fronte erguida
entre louros e pâmpanos, sem remorsos,
e correm a meta prescrita na lei.

Mas quem diz "Não" - ih - está sempre em litígio;
tem réu e juízes no foro, o mais íntimo;
definha entre os autos, sem luz nem sentença.

Érico Nogueira. Poesia bovina. São Paulo: É Realizações, 2014, p.39, 40