terça-feira, 31 de maio de 2011

Aos amantes da alta lírica portuguesa:

Ao Padre António Vieira, pregando
do nascimento de N. Senhora
no Convento da Rosa

Silva

Aspirar a louvar o incompreensível,
E fundar o desejo no impossível;
Reduzir a palavras os espantos,
Detrimento será de excessos tantos;
Dizer, do muito, pouco,
Dar o juízo a créditos de louco;
Querer encarecer-vos,
Eleger os caminhos de ofender-vos;
Louvar diminuindo,
Subir louvando e abaixar subindo;
Deixar também, cobarde, de louvar-vos,
Será mui claro indício de ignorar-vos;
Fazer a tanto impulso resistência,
Por o conhecimento em contingência;

Delirar por louvar o mais perfeito,
Achar a perfeição no que é defeito;
Empreender aplaudir tal subtileza,
Livrar todo o valor na mesma empresa.
Errar exagerando,
Ganhar perdendo e acertar errando.
Siga pois o melhor indigna Musa
E deponha os excessos de confusa,
Que, para acreditar-se,
Basta, basta o valor de aventurar-se;
E para vos livrar de detrimento,
Ser vossa a obra e meu o pensamento.
Pois não fica o valor aniquilado,
Sendo meu o louvor, vós o louvado,
Porque somos os dois, no inteligível,
Eu ignorante e vós incompreensível.



Soror Violante do Céu (1602-1693) era uma freira dominicana que na vida secular se chamou Violante Montesino. Professou no Convento de Nossa Senhora do Rosário da Ordem de S. Domingos em 1630. Foi uma das poetisas mais consideradas do seu tempo, sendo conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fénix dos Engenhos Lusitanos. É hoje um dos máximos expoentes da poesia barroca em Portugal. Aos 17 anos celebrizou-se ao compor uma comédia para ser representada durante a visita de Filipe II a Lisboa. Além do volume Rimas publicado em Ruão em 1646 e do Parnaso Lusitano de Divinos e Humanos Versos, publicado em Lisboa em 1733 em dois volumes, tem várias composições poéticas na Fénix Renascida. Retirado daqui: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/violante.htm 

quinta-feira, 19 de maio de 2011

UM NOTURNO DE PAUL-JEAN TOULET

9
Nocturne

Ô mer, toi que je sens frémir
    À travers la nuit creuse,
Comme le sein d’une amoureuse
    Qui ne peut pas dormir;

Le vent lourd frappe la falaise...
    Quoi! si le chant moqueur
D’une sirène est dans mon cœur —
    Ô cœur, divin malaise.

Quoi, plus de larmes, ni d’avoir
    Personne qui vous plaigne...
Tout bas, comme d’un flanc qui saigne,
    Il s’est mis à pleuvoir.

Paul-Jean Toulet

9
Noturno

Ó mar, tu que eu sinto fremir
através da noite oca,
feito peito de amante louca
que não pode dormir.

Grave, o vento bate na falésia!
É zombeteira canção
da sereia-coração?  
Ó coração, sublime moléstia.

Sem mais lágrimas, nem ter
ninguém por ti a chorar.
Baixo, feito flanco a sangrar,
ele começa a chover.


O noturno acima se encontra no Les Contrerimes, de Paul-Jean Toulet (1867-1920). Descobri-o através de mestre Otto Maria Carpeaux, nos Ensaios Reunidos, da Topbooks. Carpeaux relata que “Entre a poesia prosaica [...] e a poesia profunda, a que chamam ‘metafísica’, Toulet está pouco à vontade”. Pois o poeta francês produziu uma poesia “simplesmente poética.” Sem ser, contudo, poèsie pure. Les Contrerimes é a reunião póstuma da sua obra, publicada alguns meses depois que o poeta faleceu. A contenção sentimental e o domínio de ritmo e forma são admiráveis, não somente nesse Noturno como em toda a sua poesia. O sortilégio poético gerado pelos dois primeiros versos Ô mer, toi que je sens frémir/À travers la nuit creuse, essa contemplação marinha através da noite vazia, juntamente com Comme le sein d’une amoureuse/ Qui ne peut pas dormir a inquietação de pessoa apaixonada que não consegue dormir, geram uma sensualidade existencial simples, porém, de rara sofisticação. Pode-se enumerar em Noturno o tônus geral dominante no Les Contrerimes: a modulação melancólica de contida angústia, a condensação epigramática, a ironia pela antítese, que toma toda a segunda estrofe, e a refinada descrição paisagística.      
Pelo posicionamento de independência literária mantida ao largo de uma época empanturrada pelos ismos de toda sorte, podemos aproximá-lo a Cecília Meireles, que possuiu uma postura semelhante no Brasil.   
Depois de verter para o português o Noturno acima, o comparei com traduções do inglês e do espanhol e notei que minhas liberdades métricas, rítmicas e rímicas foram mínimas. Na maioria das vezes, o heróico quebrado virou redondilha maior, e, somente na segunda estrofe, eneassílabo. As rimas A e D da primeira estrofe são quase literais, achei melhor assim. Preferi manter falaise como falésia mesmo. Fiz o possível para reconstruir as aliterações, já que Toulet utiliza em abundância esse procedimento estilístico. Les contrerimes foi todo vertido para a língua de Cervantes pelo poeta e tradutor madrileno Jorge Gimeno.     
Parafraseando Mário Faustino, Paul-Jean Toulet é um grande poeta menor. Na Internet é possível encontrar o livro completo aqui: http://www.florilege.free.fr/toulet/ 
  

Sem título Edmundo Brandão