quinta-feira, 28 de maio de 2015

π

Não, a vida não me negou nada,
não me deixou de dar a minha parte,
de tudo um pouco para eu seguir
meu caminho - luz e calor.

Histórias de que me lembro comovido,
canções da minha terra natal,
velhas festas que os padres oficiam
e festas novas, com música diferente.

Num lugar distante, comovido
pelo milagre universal do dia novo,
velhos invernos embalados pelo canto
do trenó que se afasta bosque adentro.

A primavera súbito irrompendo,
o mar e os rios rugindo à minha porta,
os sapos coaxando lá no pântano,
a resina escorrendo no tronco das árvores.

Tempestades de verão, amoras, cogumelos,
trilhas orvalhadas em meio à relva,
as alegrias e provações do pastor,
lágrimas derramadas pelo livro favorito. 

Dor, amargura, desde cedo,
sonhos de vingança infantis,
dias turbulentos na escola,
correr descalço e em trapos por aí.

Um pouco de tudo - até a pobreza
na escuridão da casa de meu pai...

Não, a vida não me negou nada,
nem nada deixou de dar-me em troco.

Aleksandr Trifônovitch Tvardóvski. (1910-1971). Poesia soviética. Tradução Lauro Machado Coelho. São Paulo: Algol, 2007, p.178-179


terça-feira, 26 de maio de 2015

Ж

São milagres que pretendes?
Religiões? Mas quem foi
que te disse que não é
um milagre a floresta?
É um milagre esta costa
de rochedos escarpados,
e um milagre esta neve
de sombras bruxuleantes,
um milagre o próprio homem,
tu mesmo um milagre és.

Parece-te uma blasfêmia
que o teu sonho sagrado,
teus mágicos sentimentos,
a ciência os explique?

Donde vem o teu tormento?
E a tua dor, donde vem?
A ciência deste mundo
não será maior milagre
do que teu sonho sagrado?
E nem se pode saber
qual milagre é maior:
se a ciência ou o teu sonho...

O nosso poço sem fundo
agora está quase seco:
a ilusão - mesmo explicada -
não será sempre milagre?

Mesmo depois que o explicam,
quem ele é, de onde vem,
o gênio não permanece
sempre envolto em mistério?

Novella Nikoláieva MatvêievaPoesia soviética. Tradução do russo de Lauro Machado Coelho. 2007, São Paulo: Algol, p.436

terça-feira, 19 de maio de 2015

balada de um poeta ruim para si mesmo

 

os poemas em sua maioria
são ruins, mas, ainda assim, são poemas.
quando li O Demônio da Teoria

no item do capítulo do tema
O Valor, cujo mote desenrolo
aqui em terza rima, o problema

da oposição entre Dionísio e Apolo,
que antes era vidro, se quebrou.
saquei da minha bolsa a tira-colo

- para enxertar a imagem do Condor
sobrevoando a cordilheira dos Andes
blagueando o romantismo nesse voo - o

dicionário de rima de Fernandes,
porque poetas ruins têm instrumentos
ao alcance da não, se não são grandes

porém dignos de pena seus talentos,
para alcançar talvez notoriedade
o joio travestido de frumento

precisa ao menos de uma habilidade (1)
1. nota: há classes várias de poetas ruins,
não vou dar conta da diversidade

senão restrinjo-me ao que a mim
me diz respeito como poetastro
de uma subclasse de poetas chinfrins.

verbi gratia, há aqueles que se arrastam
em torno de quem estiver no poder
e que entre si se brigam e se desgastam

 tudo fazendo para aparecer.
data venia, me vejo na alimária:
que, embora não despreze o métier,

e seja mau poeta, é de outra subárea:
dos que temos alguma vocação,
não pra poesia, mas pra gambiarra.

escrita a nota,  volto à habilidade:
lançar mão do que está ao seu alcance,
fazer do que é ruim necessidade.

que nisso não bastando, não me canse
de escrever, por dia, uma bobagem,
um haikaizinho metido a romance

no qual um poeta ruim é o personagem
que vive a farsa tão forçosamente
a ponto de tirar disso vantagem.

Alex Simões, 14-05-2015


quarta-feira, 13 de maio de 2015


A PUNIÇÃO DO TEMPO


Os indivíduos, assim como as nações, quando deixam de cumprir o próprio destino, encontram apenas à sua frente o desastre. Os planos que se adiam ou que não se realizam nunca, e o afastamento progressivo de todos os horizontes - eis o tributo a pagar pelos que continuam trocando a realidade pela aparência. Pois a partir do momento em que os indivíduos, assim como as nações, se apegam ao simulacro das coisas em lugar delas mesmas, não conseguem mais escapar do círculo vicioso das falsas expectativas e das decorrentes tergiversações.

Quem faz da vida um brinquedo sem importância, como irá se importar com a perda, ainda que funesta, de qualquer sinal de transcendência? O caráter simulador de certos projetos pessoais de que modo, também, se constituirá em problema para os que não pretendem romper com o já conhecido ramerrão? Como o sentimento de exílio irá habitar o coração de quem não sabe evocar, por ausência do sonho, nenhuma pátria de origem?

Quem se acha pleno com tão pouco não sentirá, certamente, carência daquilo que, para bem poucos, representa uma perdição sem remédio. De uma vez que aspirar algo implicará sempre em se projetar um espaço para o voo. E só chega inteiramente a voar aquele que se entrega, sem cálculo, às alturas, pois quem as desdenha se mostra capaz até de sacrificá-las para que outros não as alcancem.

Não hão de faltar, por isso, os que preferem o brilho das poças de lama aos das estrelas porque aquelas, e não estas, parecem cativas das suas mãos. Não por acaso o sentido das distâncias costuma provocar verdadeiro terror nos que não conseguem fugir da intimidade de sua exclusiva miséria. E assim na confiança um tanto exagerada com que muitos de nós repousamos nossos olhos sobre as coisas, ao esperar delas o que jamais nos poderiam dar - por dependerem menos dos nossos arroubos que as exigências do tempo - estaremos finalmente enfrentando a hora do ajuste de contas quando nos soa, inapelável, a advertência inúmeras vezes ouvida com desprezo por conta do seu linguajar caracteristicamente pitoresco e rude: "Aí babau, Nicolau".

(Ângelo Monteiro, in_Opinião JC, 12/05/2015). Através de Luciane Amato, Instituto Landmark http://centrolandmark.com/