segunda-feira, 27 de abril de 2015

SONETO 6


Debruço-me na tarde sobre a Ilha,
enquanto o sol estanca no vermelho,
e derramo lembranças nas areias
e na relva, nas flores e nos frutos.

A memória na tarde é um calendário
que registra os mais lúcidos instantes
dos meus passos incertos e perdidos
na minha imponderável geografia.

No silêncio da tarde me absorvo,
perdido nos seus pontos cardeais,
marinheiro sem rumo e sem estrela.

Percorro a Ilha sem mirante e mapas
e céu e terra escapam dos meus dedos,
como fios de luzes intocáveis.

Carlos Moliterno. A Ilha. Maceió: EdufAl, 1997, p.24

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Para uma antropologia filosófica


     A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por trás de toda variação local e histórica, pode-se resumir em seis interrogações básicas, articuladas em três eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas sim temporais e variáveis, dão as coordenadas da orientação do homem na existência.

     O primeiro eixo é "origem-fim". Ninguém jamais soube onde e quando o conjunto da realidade começou nem como ou quando vai terminar. Pode-se arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmogônico ou a imagem do "big bang", uma teologia da criação ou um atomismo materialista, cada qual com sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão, pois dela depende o nosso senso de orientação no tempo, a possibilidade de conceber projetos e dar forma narrativa às nossas experiências.

     O segundo eixo é "natureza-sociedade". Todo homem vive entre dois campos da realidade, um anterior e independente da ação humana, o outro criado por ela. A diferença e a articulação desses campos aparecem no contraste entre o geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo contra os animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de encontrar na natureza um abrigo contra os males do convívio social. A natureza pode aparecer como um pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A sociedade pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas tentativas só revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo seu contrário, seja de articulá-los numa equação definitiva, seja de compreender um deles sem referência ao outro.

     O terceiro eixo é "imanência-transcendência". Cada ser humano sabe que ele próprio existe, que tem um "mundo" interior de experiências, recordações, desejos, temores. Mas sabe também que esse poço é sem fundo, que ninguém pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na esposa, a proteção contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é próximo e estranho a si mesmo. Por outro lado, para além de tudo o que se pode conhecer da realidade, para além de toda experiência alcançável, cada homem e cada cultura pressente um fator "x", que, desde acima ou desde o fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que são e não de outro modo. "Por que existe o ser e não antes o nada?": assim formulava Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la pela concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade ordenadora ou de uma fantástica auto-regulação de coincidências. Podemos até expulsá-la da discussão pública, deixando-a à mercê do arbítrio privado, com a abjeta covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que não escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias articulações são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos conceber o transcendente à imagem do nosso ser íntimo, como divindade bondosa que nos compreende e nos ama -- mas isso fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza fria e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços impessoais e mecânicos de uma fórmula matemática -- mas isso não nos impedirá de amaldiçoar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade humana quando nos oprime ou nos reconforta.

     Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de ignorância e conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um articula-se com seu oposto, num mútuo esclarecimento -- ou multiplicação -- de tensões. E no ponto de interseção dos três eixos, como no das três direções do espaço, fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano.

       Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que estabelecem entre os seis fatores por meio de assimilações e reduções. Muitas culturas arcaicas privilegiavam o fator "origem", explicando sociedade e natureza por um mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência. A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando poder deduzir dela uma ordem intelectual completa e definitiva. A modernidade absorveu tudo na oposição natureza-sociedade, esperando não menos utopicamente reduzir os mistérios da transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística. Preparou assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram da sociedade a razão última da origem e do fim, colocando entre parênteses a natureza, sufocando a imanência e vedando o acesso à transcendência. Cada um desses arranjos, mesmo o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório, como experimento de sondagem numa certa direção que os interesses de um momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza numa proibição de olhar para além da articulação admitida. Só a abertura da alma para a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá acesso à experiência realista da condição humana e, portanto, à possibilidade da sabedoria. Todas as explicações que, para enfatizar uma articulação em particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis.

      Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola analítica, o nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, -- todas aquelas, enfim, que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico neste país -- são doenças espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido à pergunta.

Olavo de Carvalho. A dialética simbólica. Estudos reunidos. São Paulo: É Realizações. 2008, pp.115-118 

domingo, 12 de abril de 2015

A BARCAROLA DA NOITE


A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.

A noite vem entrando a barra
trazendo o aroma lá das ilhas.
Sonoro como uma cigarra,
o mar dedilha uma guitarra,
improvisando redondilhas.
A cor do ocaso é tão bizarra
que lembra o pó das cochonilhas.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos barcos.
Surgem redondas como a lua
rosas de fogo pelos arcos.
Um véu de opala além flutua
e andam santelmos pelos charcos.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas
e as açucenas de Navarra
e as orquidéias das Antilhas.

A noite vem numa falua
entrando a barra, entre as galeras.
As sombras trazem para a rua
rosas de estranhas primaveras.
Eis que ansiosas pela lua
as ondas gritam como feras.
O mar no entanto cintilando
parece a flor de um miosótis
e o olhar de opala das quimeras.

Os ventos passam fustigando
como demônios com chicotes.
Surge uma estrela recordando
o anel lilás dos sacerdotes.
Os ventos passam fustigando
as próprias árvores austeras
e vão aos uivos como um bando
de velocíssimas panteras.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas.
Com suavidades de guitarra,
o mar oscula as verdes ilhas.
O vento traz a cimitarra,
com que cortou jasmins nas ilhas,
e corta as ondas lá da barra.
Como serpentes em rodilhas,
as ondas silvam junto às ilhas
e vão florindo pela barra
ramos de brancas granadilhas.
E o mar parece uma cigarra,
todo rendado de escumilhas.

A noite vem entrando à barra
para dormir aqui no porto.
Parou dos ventos a fanfarra.
O ventos foram para o horto,
dentro do bojo das galeras.

Trazem das ilhas as galeras
flores brilhantes como archotes.
Trazem das ilhas as galeras
cravos como mirra nas anteras
e os lindos ramos das gerberas
e os orientais estefanotes.
Trazem das ilhas as galeras
cerusa em cândidos pacotes,
vinhos em urnas e em crateras
e esses estranhos rapazotes
com o ar de deuses de outras eras.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.

(1930)

Sosígenes Costa. Poesia completa. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2001, p.81-83

sábado, 4 de abril de 2015

Dois amigos me ajudaram a resolver uma questão de escrita que, no meu caso, caminha no mesmo andamento com a vida. Eu sei, é pobre, mas é minha. Depois disso, aceitei poemas que eu havia escrito e não aceitava, e voltei a escrever sobre memória. Sim, memória. Para a amiga dediquei o poema abaixo e, no embalo, vão mais dois. Ao amigo já dediquei poemas e toda uma seção de um livro inédito. É minha maneira de agradecer a generosidade e a gentileza dos dois. Gratíssimo, Luciane Amato e Wladimir Saldanha.


LUZ LEMBRADA
Para Luciane Amato


Há um Éden na relva da memória,
relva do instante toda serenada;
a cor do sol abre-se em cheiro e orla
as margens da alegria e suas águas.

Abre-se como quem voa e acorda
cidades, flores, serras, o que estava
e não estava em vão na trajetória
imóvel – do que vendo não se cala.

Há um Éden na relva da memória,
onde serpentes súbitas se alam,
perigos de quem vive nas desoras
do coração e delas não escapa.

A matéria de amor que nos transborda,   
sem testemunhas dessa luz lembrada.



O QUE FOI SEMPRE


A memória é um sonho acordado,  
luz firmando na luz sua matéria.  
Retalhos, pó, resquícios do mais vasto
e do ínfimo pulsam numa estela

inscrita como um carma entre os meus braços
– palpita o seu frescor de apagamento,
floresce sobre a cama num retrato, e
no retrato respira o que vai sendo.

Não pode ser desfeito o que foi sempre
– senda de estrelas, dor do mais pequeno –,
o céu espelha o tempo no seu ventre, 
e o tempo mais faminto e mais sedento. 



MAR SECRETO


O cheiro diz a coisa – mundo aberto,
num átimo explosivo – mundo erguido
à tona do real já ex-deserto,
à tona de mim mesmo sem aviso.

Acaba de nascer um mundo antigo,
banhar-se duas vezes – mar secreto –,
nas ondas invisíveis me enraízo
e cresço como crescem os afetos.

A memória é um menino esquivo,
seu ser de espanto fulge e desconhece,
essa espantosidade sem alívio
expande no seu corpo que adolesce.