quarta-feira, 27 de março de 2013

Dois poemas de Érico Nogueira 

1.

Entre as ruínas, ai, de arco e busto,
eu busco ouvir além do meio físico:
ouvir o que se entrega a um alto custo
a quem, como eu, é carne e pouco espírito.

Se me surgisse em riste ou em decúbito
a via donde vim e vou com gosto,
meu coração tão flácido, de súbito,
levantaria sangue para o vôo.

Ou seja: o espírito, que tenho pouco,
e vou perdendo quanto mais existo,
onde estará, se Roma é este poço
de secreções e beijos de granito?

4.

Instrui — a mente não —, instrui o instinto
na língua, se sutil, mais carregada:
em que modulações do tom mais limpo,
cílios da pálpebra mais comportada,
trejeitos da cabeça mais centrada,
têm intenções, têm múltiplo sentido:

conforme esteja quem conforme a lua
amplia ou diminui o que te mostra,
ajeita a tua mão à sua luva
e ataca, ou pela frente, ou pelas costas.
A ocasião se colhe como a uva
que a chuva não encharca, e o sol não tosta.

Érico Nogueira, Dois, É Realizações, 2010, p.23,26.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Soneto de António Ferreira (1528-1569), poeta português. A grafia é a encontrada na edição indicada abaixo.
 
3
 
    Despojo triste, corpo mal nascido,
escura prisão, e peso grave,
quando, rota a cadeia, e volta a chave,
me verei de ti solto, e bem remido?
 
    Quando, c’o esprito pronto, aos céus erguido,
(depois que est’alma em lágrimas bem lave)
batendo as asas, como ligeria ave,
irei aos céus buscar meu bem perdido?
 
    Triste sombra mortal, e vã figura
do que já fui, uns dias só sostida
daquele esprito por quem cá vivia,
 
    quem te detém nesta prisão tão dura?
Não viste a clara luz, a santa guia,
que te lá chama à verdadeira vida?
 
António Ferreira, Poemas lusitanos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2000,  p.80.  

segunda-feira, 18 de março de 2013


O ENTE AMADO DE EMILIANO
 

Teu cavalo morto
Renascerá principalmente
Com o verão nas árvores
 
E não estarás oculto
Como um salteador de estradas
Ou um solitário irredimível.
 
Teu cavalo morto
Renascerá após a agonia dos bois
Nos currais ensolarados
 
E saberás distinguir
Essas questões difíceis que propõem
A qualquer homem vivo.
 
Teu cavalo morto
Renascerá à semelhança de um deus
Deslumbrante e amoroso.
 
Envelhecerás sozinho e triste
Até que o ar sufoque os corvos e os livros,
Comprimindo a cruz ao sol.
 
Teu cavalo morto
Renascerá como nunca pensaste,
E logo ficarás tranqüilo.
 
(1968)
 
José Carlos Targino. Cadernos de poesia nº8. Recife: Fundarpe, 1997, p.18.  

 

 

sexta-feira, 15 de março de 2013


Topografia do burgo de Olinda à distância de quatro séculos, a partir de um telescópio montado no campanário da Igreja da Sé, com pedidos de desculpas aos mapas e teses dos geógrafos, bem como ao teodolito e demais instrumentos de trabalho dos senhores arquitetos e engenheiros. 
 
É um volume de sonho e luz aberto
nas prateleiras do ar,
aos olhos revelando um mundo impresso
em água e eternidade, em brisa e mar.
 
E encanto antes de tudo, só encanto
para quem a conheça:
e, sobretudo, o medo que esse encanto
um instante após nascer desapareça.
 
Evadida do tempo, em nós desliza
e fica, como a lembro,
à flor do mar, dourada pela brisa
e o ouro dos cajueiros de setembro.
 
Seria, na lembrança, outra paisagem
ao mundo acrescentada,
não fosse o mangue que enferruja a aragem
na qual, por ser encanto, está pousada.
 
Rasurando a memória, se folheio
as lembranças extintas,
evita, silenciosa, os meus receios
e altera o mundo sem que o mundo sinta.
 
O sonho extinto em quem, sonhando, veja
mesmo extinto não finda
que o olhar sonha quando a lembra, acesa,
e quando a esquece sonha mais ainda.
 
Jaci Bezerra. Linha d’água, 2007. Cia Editora de Pernambuco.