quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Do livro Dicionário amoroso de Salvador, Casarão do Verbo, 2014.

Ba-Vi

                Rivalidade que se perde na noite dos tempos. Qualquer dado, estatística que você for verificar, cuidado. O torcedor é sempre um fanático, e, mais do que óbvio, tenderá para o time dele, isto é, puxará a brasa para sua sardinha.
Algum gaiato espalhou que se macumba ganhasse jogo o Ba-Vi sairia sempre empatado. Eis aí uma grande inverdade. Os orixás também torcem e muito santo faz sua fezinha. Os dois times, Bahia e Vitória, podem estar caindo pela tabela no campeonato brasileiro, e quando conseguem se manter ou chegam lá no susto, mas aí... o Ba-Vi entra em campo. A torcida do time vencedor transformará o domingo à noite num..., num... Calma, estou procurando um termo apropriado, uma palavra que defina a zoeira, a arruaça, a baderna, e o ego superinflado do torcedor. Quem vencer se considerará um time insuperável. Numa situação dessas, escutei um taxista tricolor dizer que “pode vir a seleção que vier, a gente quebra”. É por aí.
O Ba-Vi é sempre superlativo, isto é, ba-víssimo! O ego dos torcedores é maior, bem maior, do que a Fonte Nova, reconstruída, aliás. Dizem que o torcedor do Ba-Vi durante o jogo não se entrega, aguenta o suspense, as falhas ou acertos do juiz? Que nada! Ele enfarta, sai na peixeira e mata a mãe! Os torcedores de um Ba-Vi são como água e óleo. Não há uniformidade possível. Em hipótese alguma um deixará de sacanear o outro, nem em enterro. Pior para o morto.
O ápice desse excesso é um final de campeonato. Não importa qual. Você verá homens duros — que perderiam um braço sem dar um pio — chorarem feito menino buchudo que lhe roubaram o doce. Depois do último apito, a cidade se transforma num grito só.
É homérico e minimalista ao mesmo tempo. Distingo. Durante o jogo é batalha campal. Após a partida, mal a manhã pôs o nariz pra fora da noite, escuto daqui da varanda, os porteiros e moradores detalharem lance a lance em detrimento do perdedor da vez. Se revidar a coisa se agrava, mas nem adianta.  É Já-ia de um lado, Vice-tória do outro, infinitamente. E isso é só o começo. A inventividade para sacanear o perdedor da vez é sem tamanho. Desse modo, é preciso exemplificar os primórdios da rivalidade. O baba.         
                Um baba decide masculinidades e, nos tempos que correm, feminilidades. Evidencia, na aparente descontração, uma guerra íntima de egos, de jogadores de fim de tarde ou finais de semana. Se o Ba-Vi é um épico, o baba é o drama em miniatura. Se num baba você tomou aquele drible vergonhoso, é provável que herde traumas que nem Dr. Freud resolverá. O esportista amador, é claro, não tem o tempo e a dedicação de um profissional, mas mentalmente é um Pelé. Faz lançamentos em profundidade como um Zico. Possui a classe de um Bobô. O melhor, no entanto, é o pós-baba. O cenário? É óbvio: um boteco, com a narração hiperbólica de feitos incomuns. Um gol de canela se transforma em precisão milimétrica; chutão na zaga em barreira intransponível. As metamorfoses são impagáveis, e a assistência nem faz que acredita, pois só escuta a si mesma enquanto se afoga em cerveja e utiliza o tira-gosto como tábua de salvação.
Acima de qualquer suspeita ou pedantismo, o Ba-Vi é uma questão metafísica. Está além de explicações racionais. É feito a vida — radical! Ou é ou é. Não há meio termo. Não há registros de alguém que nasceu Bahia e virou a casaca para o Vitória, ou vice-versa. Não há porque é uma ofensa pessoal, se fizer isso, morre.