Nota sobre “Dois”, de Érico Nogueira
por Ronald Robson
Dois (2010, É Realizações), mais recente livro do poeta paulista Érico Nogueira, que rápido alcança paridade aos grandes da literatura nacional, é ponto de torção do arco de uma lira que, posta em circulação com O livro de Scardanelli (2008, É Realizações), o faz partícipe das duas linhas mestras de nossas letras: a dos grandes arquitetos do verso, de Manuel Botelho de Oliveira a Bruno Tolentino, e a dos saltadores de abismos rumo a Deus, de Cruz e Sousa a Ângelo Monteiro.
O que se encontra em Dois são registros de uma “paidéia” muito pessoal, por dizer respeito à pedagogia que o homem Érico se impôs: buscar “Roma” (a salvação, a luz divina, a veracidade da existência), ainda que ela seja “este poço / de secreções e beijos de granito”. Pois “viver o que nos mata todos vivem, / saber vivê-lo, sim, é ave rara”. No livro anterior, como Scardanelli (pseudônimo da loucura de Hölderlin), Érico dramatizara a idéia de que, em poesia, a experiência mais particular só pode ser expressa por meio do artificialismo congênito à verdadeira arte – e o realismo, a ele como a Auerbach, é o que de mais alto se constrói sobre uma pira em que queimam o real e o imaginado.
Tal tema ainda se apresenta em Dois, todavia como parte de uma busca: a apropriação de si mesmo, que é apropriação dos grandes temas da poesia ocidental por meio de experimento sutil, atualíssimo, da potencialidade dos metros clássicos. Veja-se que na seção “Deu Branco”, que narra em nove poemas uma viagem a Roma, o poeta dá ao alexandrino ritmo que nunca assumiu em língua portuguesa: “Roma, enfim – chego bem, só que tarde demais; / estátua e praça e tudo não como o esperado / (o mundo é tão certinho na fotografia); / ouço ‘Deus mora ali, bem ali, logo além’, / mas, olhando o tamanho da fila, meu Deus, / é bom ficar de fora; um giro na cidade”.
O preceito de Goethe de que o artista só alcança maestria por demonstrar destreza nas limitações naturais à sua arte é norte ético a Érico Nogueira. Por isso importa-lhe a “cópula impossível” entre pensamento e realidade, “o tônus e o tino”, instinto e intelecto, sexo e Deus, ritmo e sentido. “Porque o contentamento / não há de ser luxúria ou celibato”, Érico Nogueira tem olhos para a unidade que fundamenta todas as dualidades da existência, por saber que “a ocasião se colhe como a uva / que a chuva não encharca, e o sol não tosta”.
Espanta o domínio que Érico, conhecedor do hexâmetro grego (ele traduz Teócrito em seu doutorado) aos ritmos ibéricos, estabelece sobre todos os metros em senhorio cabal, com a presença, às vezes, de um riso indisfarçável, remate da autoconsciência de quem cria. Sua rima toante tem a sutileza do silêncio (“unir” / “aqui”; “par” / “Há”; “jogo” / “corpo”; “gosto” / “vôo”). Talvez porque sua busca por si, por Roma e pela perícia em poesia só possa, afinal, ser apreendida em sotto voce: “Quando o dia se apaga, dentro e fora, / e a luz se adensa em nódoas pelo breu, / alguém intui que algo se demora / cujo nome, se houve, se perdeu”.