quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

                                    

CRONOCENTRISMO E CRÍTICA LITERÁRIA


 


Curioso como os detratores do eurocentrismo e do logocentrismo e do falocentrismo deixam passar em silêncio uma categoria que, a um observador desinteressado, não deveria ser motivo de menor escândalo do que as primeiras: o cronocentrismo, a mais ou menos consciente transformação do tempo (ou de um certo momento do tempo) em coisa, em algo cuja essência pode ser definida a exemplo de uma cadeira, em algo que pode ser estudado como um bicho de laboratório, alçando-se daí a causa de fenômenos, a critério de julgamento, a móbil de ações. Nunca encontrei quem hoje defendesse a sério essa posição tal qual; creio, entretanto, que nem por isso ela está menos viva, e viva exatamente porque anônima e difusa, quer como pressuposição tácita entre palestrantes e suas audiências, quer como o sentimento secreto unindo autor e leitor.

O cronocentrismo pode, claro, manifestar-se em meios intelectuais restritos como fetichização de um período pretérito (e uma Idade Média de cartolina em alguns círculos católicos é o primeiro exemplo que me vem à mente), mas, para a massa dos educados lato sensu, ele aparece como aquilo que Jacques Maritain chamou de cronolatria, o uso dos in e dos outs das revistas de moda no campo das idéias, seguindo-se daí a fatal legitimação do presente e a transformação do conceito em voga ontem em algo tão risível e tão absurdo quanto uma anágua ou um gorrinho de melindrosa. É a adoração narcísica da própria época — essa época não se definindo por mais do que pelo espaço entre dois derniers cris. Talvez por isso os defensores do multi- a qualquer preço sejam de uma inconsciência tão complacente quanto ao cronocentrismo: é ele que os legitima; por trás da poeira levantada pela caravana de palavras vagas, difícil é escutar, no seu contexto e nos seus próprios termos, o discurso dos homens sobre as mulheres na longa era de trevas anterior ao advento de Simone de Beauvoir ou o que os padres da Igreja entendiam realmente por pecado da carne. Para “dar voz” aos excluídos (usando a metáfora de que eles mesmos se servem), é preciso abafar a dos seus supostos algozes.

Mas tudo isso é coisa por demais sabida.

Interessa-me aqui dar um exemplo de como o cronocentrismo realiza-se em um domínio preciso, a literatura, e mais especificamente na crítica literária — esse altar vazio a qualquer ídolo vagabundo, bolsa de valores abjeta em que um rumor certo plantado no lugar certo decide o esquecimento de alguns e o triunfo de outros. Esta última metáfora, já aviso, peguei emprestado de Paul Valéry, e é exatamente o caso dele que vou examinar, não sendo um dos mais trágicos, mas um dos que melhor conheço.

Claro, a sua obra, por demais brilhante, não pôde ser relegada ao ostracismo de livro barato em sebo, como a de Anatole France; tampouco, como a de um Claudel, chegou a se tornar um bicho admirado, mas de longe, pois fundamentalmente estranho aos animaizinhos do cativeiro — o pensamento de Valéry não se opõe ao clima das classes falantes atuais. E, no entanto, o Valéry que é hoje cultuado pela parte mais cool da inteligência francesa é muito diverso do grande homem oficial que morreu em 1945 pesado de honras, em meio à balbúrdia pública dos obséquios nacionais decretados por De Gaulle, decorado em prosa e verso pela crítica européia de então.

Porque, de fato, quando da sua morte, Valéry mal poderia prever a inversão que a recepção da sua obra iria conhecer nos anos ulteriores. Essa mudança se deu por dois acontecimentos. O primeiro, a publicação póstuma dos monumentais Cahiers, os célebres cadernos privados que ele começara a escrever quotidianamente a partir de 1894. De uma escrita críptica, muito diversa da prosa arguta e elegante de homme du monde que nos revela as Variétés, os Cahiers são uma coleção de esboços, de intuições, de idéias mais ou menos acabadas, mais ou menos geniais — algumas delas clarividentes, como a crítica lingüística à metafísica (que se vulgarizaria na segunda metade do século) ou a anunciação da pragmática nos estudos da linguagem (como mostrou Michel Jarrety em Valéry devant la littérature).

Esse esforço editorial coincidiu com a lenta mas decidida ascensão da esquerda cultural na França do pós-guerra. Foi então que os darlings dos salões de vanguarda, gente como Nathalie Sarraute, Francis Ponge e Philipe Sollers, insurgiram-se contra a admiração unânime pelos alexandrinos conscienciosamente compostos de “La Jeune Parque” (1917) e dos poemas de Charmes (1922), taxando-os de “neoclássicos” (rótulo em si mesmo nada desonroso), de derivações pioradas de Mallarmé (o que é falso; Pierre Guiraud mostra muito bem a diferença de arte entre os dois). São críticas ralas que não se esforçam em perceber como a técnica poética de Valéry, aparentemente (nos termos deles) retrógrada, integra-se à sua filosofia da linguagem, tão (como eles diriam) avançada. Em vez disso, não mais do que a reiteração dos critérios cronocêntricos: de que uma poética é necessariamente dependente de uma certa época, essa “coisa” que a determina, o que lhe escapa sendo “anacrônico”; de que o artista, seja rompendo com o mestre, sendo indo “mais longe” do que ele, deve perpetuamente incensar o Novo, esse ídolo sempre redivivo, filho poupado de Crono.

Tal julgamento, primeiro uma idiossincrasia provocadora dos recém-chegados, difundiu-se mais e mais entre a intelectualidade francesa (ninguém quer parecer bourgeois), e hoje é corrente entre os agathoi a visão de que o Valéry de “Cimetière marin” ou de “La Pythie” é um bom autor de vestibular, mas que seu melhor estaria na prosa, sobretudo naquela mais abstrusa, mais consoante ao “espírito do nosso tempo”, pós-estruturalista antes da hora, dos Cahiers. Se a percepção de um autor maior como Valéry conheceu uma inversão tão importante, imagine o leitor a quantidade de talentos mais modestos imolados ao Moloch banal e insaciável da crítica cronocêntrica.

O exemplo é ilustrativo de o quanto o cronocentrismo é uma arma retórica eficaz na guerra cultural, quer seu uso se dê de forma intencional ou não. Primeiro, ele serve para as guerrilhas vanguardistas ascenderem aos postos prestigiosos — jornais, revistas, editoras, universidades; a vaidade, natural em todo homem, aguçada no intelectual, não tolera o olhar de desdém de quem se arroga o ápice do processo histórico: eis as portas abertas aos novos donos do discurso. Uma vez lá, estes últimos põem-se a moldar o mundo à sua imagem e semelhança, autorrealizando suas profecias. Assim, todo adversário vai se tronando um anacronismo aberrante, um João Batista tão mais incompreendido quanto mais esperneador; entrementes, o poder dos novos grupos mais e mais se consolida, sua autoridade passa mais e mais inconteste. O cronocentrismo ao mesmo tempo abre-lhes espaço, suprime-lhes os discordantes, legitima-os. Daí sua recorrência — vejam se, entre nós, não foi bem essa a tática dos irmãos Campos.

É também por essa lógica que o suposto contraste entre o reacionarismo político e o progressismo estético dos primeiros românticos franceses ou de um T. S. Eliot deixa um bom número de críticos intrigados como pelo mistério da Trindade. Como se quem quiser “avançar” em arte (ou em educação ou em ciência ou em política) devesse estar por isso mesmo obrigado a “avançar” em todas as outras atividades do espírito. O tempo é tão coisa que se impõe simultaneamente em todo domínio da vida humana; só é possível aceitar em bloco seu desenvolvimento (posição progressista) ou negá-lo por inteiro (e cair no obscurantismo). Um falso problema desse tipo distrai-nos de uma questão crítica realmente substantiva: como, a partir “de dentro” do pensamento desses autores (e não de abstrações históricas), relacionam-se suas opiniões políticas e suas escolhas formais? E haveria relação necessária entre ambos?

Levada assim à caricatura, pode a idéia louca do cronocentrismo parecer um desvio da vanguarda cultural, de umas poucas mentes raskolnikovianas intoxicadas de ambições e de palavras sem substância. Mas quantas vezes nós mesmos já não nos consolamos pelo triunfo de um autor medíocre com a idéia de que seu nome não vai sobreviver ao sucesso passageiro, de que a História é uma espécie de semeador de parábola, separando escrupulosamente o joio do trigo? Há um conforto em escamotear a realidade por demais humana da história literária, as vaidades, os conchavos, os justiciamentos que lembram os de qualquer corte, de qualquer assembléia. Enquanto isso, os que prosperam nem suspeitam uma mediocridade possível, e que o olvido seja leve ao homem de talento fora da “sua época”.

 

Por Rodrigo de Lemos www.dicta.com.br

 

 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Esta entrevista vai na íntegra, retirei daqui: http://www.tirodeletra.com.br/index.htm

Otto Maria Carpeaux 1

Entrevista conduzida por Homero Senna e publicada na Revista do Globo, nº 483, de 28/05/1949 e republicada em seu livro Republica das letras. 3ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 


Apresentação:

O aparecimento, há alguns anos, de Otto Maria Carpeaux no jornalismo carioca despertou viva curiosidade. Apresentado em grande estilo, por Álvaro Lins, num rodapé do Correio da  Manhã, como um scholar que muita coisa nos poderia ensinar e que, apesar de sua recente mudança para o Brasil, já estava quase em condições de escrever seus artigos diretamente em português, todo mundo quis ler e conhecer o ensaísta austríaco que escolhera o Brasil para exilar-se, depois dos tristes acontecimentos que se desenrolam em sua pátria.
E - como quase sempre acontece - não demorou que, a propósito do novo crítico, que a anexação da Áustria à Alemanha fez emigrar para o Brasil, se formassem correntes distintas. Seus artigos passaram a ser lidos então com maior  interesse ainda, tanto pelos fãs como pelos que estavam ansiosos de jogar alguma água naquela fervura de citações, de idéias e nomes novos.
Depois vieram os livros, veio o processo de naturalização, e Carpeaux - que conhece hoje, melhor do que muitos, a literatura brasileira - passou a ser um elemento dessa literatura, encontradiço nas rodas literárias do Rio e – com impressionante assiduidade - nas páginas dos Suplementos.
Seus artigos, escritos de início em francês, logo passaram a ser redigidos diretamente em português, língua conforme nos confessou - já consegue pensar. E é inegável que, do ponto de vista da correção da linguagem, escreve  melhor do que muita gente nossa. Nisso teve grande seu amigo Aurélio Buarque de Holanda, que o tirou de várias entaladelas e aos poucos lhe foi apontando os escolhos que era preciso evitar, nas águas nem sempre límpidas desta chamada  "última flor do Lácio".
Do fundo, da substância de seus artigos, às vezes excessivamente densos, uns continuam gostando, outros não, o que, aliás, é natural. Mas como o seu nome, graças à imprensa, se foi  divulgando por todo o Brasil, há uma enorme curiosidade, principalmente na província, em tomo do "homem" Carpeaux, cujo nome muitos supõem pseudônimo e cuja figura conhecem apenas através de uma hirsuta caricatura de Augusto Rodrigues. Por isso concordei logo com Maurício Rosenblatt quando este lembrou que Carpeaux não deveria estar ausente desta série de reportagens. De fato, o autor de Origens e Fins - que em oito anos de residência no Brasil não concedeu jamais uma única entrevista - poderia, por certo, trazer a estes depoimentos uma nota original e preciosa - as reações de um europeu diante do meio social e literário brasileiro, a experiência de vida em terras deste hemisfério, a luta áspera e obstinada com o idioma.
Além disso, a entrevista iria ao encontro do interesse de inúmeros leitores, curiosos de saber como é, no trato de todo-o-dia, o cidadão de cultura tudesca que assina nos jornais aqueles compactos rodapés.
Carpeaux, entretanto, não sabe improvisar. Por isso tive de organizar-lhe um questionário, a que ele respondeu por escrito. Se a entrevista perde, com isto, algo de espontaneidade, ganha muito em precisão e autenticidade.  

- Onde e de que modo se processou sua formação intelectual?

Estudei em Viena e em outras universidades européias. Poucos sabem que, antes de estudar Letras, estudei (até o fim) Matemática, Física e Química. Nunca me aproveitei praticamente desses estudos. Mas aí aprendi algo de método e precisão de pensar, o que é vantajoso no mundo sempre um pouco vago das letras.

- Quais as principais influências recebidas na mocidade?

Sou vienense, mas "Viena" não significa "valsas e psicanálise". Sou produto de um ambiente multinacional, cosmopolita. As influências mais poderosas para a vida inteira: a Antigüidade clássica (oito horas semanais de latim durante oito anos de estudo secundário); o espírito do catolicismo barroco que enche a atmosfera austríaca, e sobretudo o sistema de ensino universitário alemão (como foi antigamente), com as liberdades conjuntas de ensinar e estudar; daí também a relação dos estudos literários com os de Filosofia, História, Sociologia; depois, Guerra, Inflação e profundas transformações sociais ensinaram-me algo do sentido da História: lições de Hegel, Marx e Croce transformando-se em experiências vividas.

- Como era a vida na Áustria e nos outros países por onde andou?

O cosmopolitismo meio germânico, meio latino, meio eslavo da Áustria antiga transformou-se em imposição depois de 1918: a Áustria ficou como país pequeno; os austríacos, cosmopolitas por necessidade. Conheço a Europa inteira, sobretudo a Alemanha, França e Itália; considero-me como "bom europeu". Minha profissão foi sempre a Literatura: vários e inúmeros artigos de revista publicados. Houve episódios diferentes: por exemplo, dois anos de trabalho no cinema mudo, em Berlim, entre 1927 e 1929, redigindo scripts. O jornalismo, de que vivi durante aqueles anos todos, só foi meio de vida, embora às vezes sobrepondo-se às outras atividades. Segundo toda a probabilidade, eu seria hoje o articulista de fundo da Neue Freie Presse em Viena, então o maior jornal da Europa Central. As negociações a respeito estavam concluídas em março de 1938, quando ... quando aconteceu "aquilo".

- É verdade que o chanceler Dollfuss tinha grande apreço pelo seu livro A Missão Européia da Áustria?

A Missão Européia da Áustria é um pequeno livro em que a tese política daqueles dias - a necessidade européia da independência austríaca, força de equilíbrio da Europa - se defendeu, não como slogan, mas com argumentos históricos, sociológicos, culturais. A necessidade da independência austríaca, então desprezada pelos "realistas" que não deram importância a país tão pequeno, revelou-se logo depois: a anexação da Áustria pela Alemanha, em março de 1938, fechou o círculo em torno da Tcheco-Eslováquia, o que produziu Munique, o que separou do Ocidente a Polônia, o que isolou no continente a França etc., etc. A luta pela independência austríaca, de 1934 a 1938, retardou durante quatro anos a agressão geral à Europa. Os outros não souberam aproveitar esse tempo. Mas nós, cumprindo nosso dever, lutávamos. Lutávamos sob as ordens de Dollfuss, que era bem mais do que "meio fascista". Mas nem todos teriam falado tão alto como eu, lá na Áustria e aqui no Brasil. Quando Álvaro Lins me apresentou ao público brasileiro, disse uma verdade ao assinalar: "Sobre esta base da independência da Áustria é que o chanceler Dollfuss e o escritor Oto Maria Carpeaux sempre se entenderam; quanto aos problemas sociais, ao contrário, nunca puderam se entender"(1). E sabe você o que significava então inspirar esta frase e as alusões antialemãs do artigo? Isto em 1941, quando eu estava aqui como exilado, sem papéis, o DIP vigilante e o embaixador da Alemanha todo poderoso? Falei assim na Áustria, até minha fuga precipitada e perigosa, no dia 15 de março de 1938, depois de ter estado escondido durante quatro dias. Falei assim na Bélgica, como redator de um jornal de Antuérpia, em 1938/1939, enquanto os agentes da Gestapo me perseguiam e a Europa muniquizada nada queria ouvir daqueles "problemas sociais". Falei assim aqui no Rio, desde 1941, escrevendo contra o fascismo alemão, o italiano e o espanhol (e meu primeiro artigo na Revista do Brasil foi contra Vichy).

Faz uma pausa, para logo prosseguir:

A oportunidade é boa para fazer profissão de fé política. Apesar de ter exercido aquela atividade antifascista durante tantos anos, acho que antifascismo é uma atitude, não uma profissão. Os acontecimentos de outubro de 1945 criaram aqui o desemprego de vários antifascistas profissionais; são estes que, conforme a moda do dia, "simpatizam" com o comunismo, para renegá-lo no dia seguinte, fazendo profissão de fé "democrática". Eu não sou comunista, nem anticomunista, nem sou "democrata" à maneira daqueles. Acredito na inevitabilidade do advento do socialismo; mas é preciso lutar para que sob o domínio desse socialismo não desapareçam os valores culturais tradicionais e os valores da li berdade individual. Afigura-se-me necessária essa luta porque não acredito bestamente no "Progresso" com maiúscula, quer dizer, no progresso sempre para o melhor. Segundo os princípios do Progresso, já não devia existir há muito essa coisa chamada Destino; e no entanto ... Destino foi que escapei, daquela maneira, de Viena. Destino foi que desembarquei certo dia no Brasil, ficando primeiro um ano e meio em São Paulo.

- Como foram seus começos de vida no Brasil?

Quando perguntaram a Sieyes, em 1795, o que teria feito durante os anos do Terror, ele respondeu: "Sobrevivi." Em São Paulo vendi meus últimos livros.

- Então trouxe consigo sua biblioteca?

Fugi de Viena com uma pequena mala de mão e sem um tostão. Perdi pátria, casa, móveis e vários milhares de livros. Ao contrário do que se supõe, os nazistas não queimaram as bibliotecas (só houve queimas simbólicas); distribuíram os livros apreendidos entre pessoas interessadas. Esteve em Viena, nesse tempo, um professor universitário americano, amigo meu; este foi à Gestapo, declarando que me havia emprestado vários livros; e tão grande era ainda o prestígio de "cidadão americano" que lhe permitiram, sem provas, escolher uns duzentos volumes que ele me mandou para a Bélgica, e que eu vendi depois em São Paulo, por necessidade. Hoje tenho mais ou menos uns dois mil e quinhentos volumes, pequena biblioteca de trabalho, penosamente reconstruída; não é nada, mas é questão de to make the best of it.

- É verdade que dispõe de um excelente fichário?

É lenda. Não possuo fichário algum.

E virando-se para mim e mostrando o seu escritório:

Onde está ele? Algumas notas que chegaram incluídas naqueles volumes revelaram-se pouco utilizáveis. De nada me adiantaria um fichário velho. Não é erudito o escritor que tem muitas fichas, assim como não é bom general quem tem muitos soldados e nada mais. Acredita na "lenda do fichário" quem ignora como é (ou foi) firme a formação universitária européia. "Cultura é aquilo que fica quando uma pessoa já esqueceu tudo o que aprendera."

- Quando regressou ao Rio?

Em princípios de 1941. E minha verdadeira vida no Brasil teve início em março desse ano, graças à intervenção de meu amigo Álvaro Lins.

- E que tem feito desde então?

Está tudo assinado...

- Por que motivo escreve sob pseudônimo?

"Carpeaux" não é pseudônimo. É o meu nome de família, traduzido para o francês para ficar mais pronunciável. De pseudônimo só se pode falar quando o público desconhece a identidade do autor. Mas no meu caso nunca houve dúvidas a respeito, assim como ninguém até hoje duvidou da identidade do Sr. Dias da Cruz com o meu querido amigo Marques Rebelo ...

- Foi apresentado por Álvaro Lins ao público brasileiro como escritor católico. Ainda o é?

Pertenço à Igreja Católica; tudo o mais é questão de foro íntimo. Estou estranhando o "ainda", embora compreenda os motivos da pergunta. Mas por mais que se abuse da Igreja para fins diversos, ela é e fica a Igreja, fundamento e vaso das tradições cristãs, cuja indispensabilidade no mundo presente e futuro se me afigura tão certa como a citada inevitabilidade do socialismo... mas não me compete defini-la. Não escrevo sobre teologia. Sou leigo, e os leigos gozam de liberdade maior do que pensa a gente extra muros. Não se conhece bastante, aqui, a liberdade dos católicos da França e da Alemanha ocidental. No resto, você me permita citar Chamfort: "Prefiro a companhia dos ateus à dos crentes. Na presença de um ateu ocorrem-me todos os argumentos filosóficos em favor da existência de Deus; na presença de crentes ocorrem-me os contra-argumentos”.

- Quantos artigos escreve por semana?

Dois, para os jornais em que colaboro; e mais um ou outro por mês para revistas. Como são artigos longos, que exigem documentação, consultas e leituras prévias, dão muito trabalho, trabalho noturno porque preciso exercer outra atividade, a de bibliotecário. (2)

- Gosta de escrever ou preferiria outra profissão?

Não gosto; é um pesadelo. Mas, ainda mesmo que escolhesse outra atividade, reincidiria. Há tanta coisa que me interessa e entusiasma: História, Filosofia, Poesia, Artes, Música, e de que preciso dar conta a mim mesmo. Ora, minha vida tem sido tormento e desespero, mas são aquelas coisas que me reconciliam com a vida e "desejo, enfim, devolver a Deus uma alma encantada e grata". São palavras de Gide, palavras de poeta; e Poesia, os amigos vão dizer, não é realidade; sim, mas tampouco é ficção.

- Que assuntos lê de preferência?

Há muito não chego mais a ler aquilo que queria; só o que preciso ler para documentar-me.

- Em que língua prefere fazer suas leituras?

Leio todas as línguas européias, quase sem sentir diferença.

- De que modo divide o seu dia?

Não divido o meu dia; ele é que me divide ... Levanto-me em geral às oito da manhã, deito-me à uma, duas, três da madrugada, conforme, sem fazer pausas. Um amigo meu, morto há muito, costumava dizer (e as palavras vêm a propósito do meu caso): "Estou trabalhando dia e noite; de noite, pergunto ao quadro na parede se meu trabalho lhe agrada, e ao relógio se está cansado; de madrugada, pergunto à noite se dormiu bem."

- É apreciador de cinema?

Fui; do cinema mudo que estava para virar arte quando a técnica estragou tudo. O cinema sonoro é um dos símbolos do american way of life: aperfeiçoado, estúpido e barulhento. A Técnica, em geral, lembra criada que arruma nas dependências com tanto barulho que na sala não se pode fazer música. Porque observe que a lei profunda do cinema é o movimento. E o diálogo falado retarda o movimento. O quadro deve ficar fixo até que o sujeito diga uma frase inteira. Além disso, o diálogo deve ser acessível às multidões, enquanto o assunto visível pode ser interpretado de modo diverso pelo culto e pelo inculto, pelo letrado e pelo analfabeto.

- Considera-se, em música, diletante ou entendido?

Nasci e vivi com música. Mas considero-me diletante, embora tenha adquirido, de entendido, o hábito de apreciar, na música, menos o efeito sentimental do que a estrutura temática e harmônica. Preferências: música eclesiástica dos séculos XVII e XVIII; as sonatas e as músicas de câmara de Beethoven; as óperas de Mozart; os lieder de Schubert; enfim, de Bach tudo. (3)

- De que modo aprendeu o português?

Nunca estudei propriamente a língua; nunca tive aulas de português. Aprendi a língua exclusivamente lendo, lendo muito, em São Paulo; no Rio, depois de poucos meses comecei a escrever diretamente em português, língua em que hoje já consigo pensar. Devo isso em grande parte à minha forte base de latim e aos conselhos de Aurélio Buarque de Holanda. Considero o fato de haver aprendido, mais ou menos, a língua portuguesa como o ordálio mais tremendo a que a vida me submeteu.

- Qual o primeiro livro brasileiro que leu?

As Páginas Recolhidas, de Machado de Assis; o capítulo "O Velho Senado" ainda me parece a maior página que li em prosa portuguesa.

- Quais os vultos da nossa literatura que mais o impressionam?

Você se refere à literatura do passado? Machado de Assis; e, apesar dos defeitos evidentes, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, porque são os mais brasileiros, os que me dizem coisas que ignorava na Europa.

- E os que mais lhe desagradam?

Tendo conhecido a literatura brasileira já aos quarenta anos de idade, fiquei livre de impressões e preconceitos de escola e ambiente. Faço para mim, e só para mim, a "revisão de valores" que em literaturas velhas se faz periodicamente, sem irritar suscetibilidades. A pintura francesa do século XIX, para dar um exemplo, é tão rica que suportou a eliminação posterior da "pintura histórica", de péssimo gosto, mas cujos imitadores ainda são considerados "glórias nacionais", tabus, em países de menos idade artística. Será aqui considerado iconoclasta quem detestar a poesia pseudo­romântica e pseudoparnasiana. Não nego o valor histórico; e Gonçalves Dias foi homem admirável. Mas os chamados gênios que morreram com vinte anos teriam acabado como Luís Delfino, contemporâneo deles, acabou aos setenta. A verdadeira poesia nacional começou com Cruz e Souza e Alphonsus, para continuar com Bandeira, Drummond, Murilo, Schmidt. Não sinto simpatias passadistas. Mas também ao pseudomoder­nismo, imitação pseudonacional do futurismo italiano, dedico os sentimentos da minha mais íntima antipatia e da mais elevada desconsideração. (4)

 - Por que quase nunca escreve sobre autores brasileiros?

Já falei dos poetas. Escrevi sobre Graciliano e José Lins. Admiro Otávio de Faria, Gilberto Freire. Augusto Meyer, vários outros. Mas não sou crítico profissional, antes livre atirador, sem obrigação alguma de escrever sobre tudo. Em geral, não escrevo sobre o que admiro, mas sempre sobre o que me parece exigir análise e interpretação. Quanto ao Brasil, sou estudioso apaixonado das coisas nacionais: Literatura, História, Sociologia, estudando-as para meu proveito. Considero essa atitude como dever de intelectual que se estabeleceu em país novo para ele.

- Há algum livro essencial da nossa literatura que ainda desconheça?

Desejaria desconhecer alguns que já li ...

- Pode a nossa literatura aspirar a uma importância universal?

Que vem a ser isso? Camões e Fernando Pessoa têm importância universal; mas a literatura portuguesa toda não tem. Strindberg tem; mas a literatura sueca não tem. A literatura norte-americana de 1850 era tão provinciana como a brasileira de então; e hoje é a mais viva do mundo.

- Que projetos tem para o futuro?

Quando o danado trabalho cotidiano me deixar uma folga, vou redigir o livro sobre a literatura russa que prometi a José Olímpio; a documentação está pronta. Gostaria também de escrever o Livro da Vida, que eminente estadista brasileiro declarou há pouco ser sua única leitura.

- Dos livros de sua autoria, qual o que prefere?

O que escrevi e não publiquei: a História da Literatura Ocidental, trabalho tremendo de umas quatro mil páginas datilografadas, concluído em novembro de 1945. Sim. 1945. E até hoje... (5)

- Espera voltar à Europa, ou já se sente definitivamente enraizado no Brasil?

Voltar para passear, sim, para rever ... Mas só para isso. Não considero o ato de minha naturalização simples formalidade jurídica. Conheço e respeito os limites do "enraizamento". No resto, considero-me brasileiro. J'y suis, j'y reste.

- Já se pode viver entre nós da profissão de escritor?

A não ser uns felizardos autores de best sellers, ninguém vive, em parte alguma do mundo, da profissão de escritor. É um erro pensar que isso é comum, por exemplo, na Europa. Não fossem Gide e Roger Martin du Gard homens de grande fortuna pessoal, e nem Les Faux Monnayeurs nem Les Thibault dariam para eles viverem. Outro que teria morrido de fome se fosse depender dos direitos autorais foi Valéry, por mais de vinte e cinco anos diretor da Agência Havas. E ainda são de ontem e muito desconhecidas as aperturas financeiras do grande Bernanos, que no entanto era um escritor universalmente conhecido, com livros traduzidos para vários idiomas. É verdade que um escritor como Somerset Maugham consegue, ao que parece, viver - e viver à larga - com o produto dos seus livros. É preciso não nos esquecermos, porém, de que é também autor de teatro, e o teatro, sim, sempre foi muito mais lucrativo do que qualquer outro gênero literário. O que importa é uma relativa independência, de modo que o rendimento do trabalho literário vire parte cada vez maior do rendimento total. Nos últimos cinco anos, a situação melhorou muito no Brasil. No meu caso particular, aquela parte subiu de 20% para 60%. No entanto, esse negócio de duas ocupações é o diabo...

- Pode dar-me, ainda, alguns dados pessoais?

Nasci em Viena, em 1900. Casado, não tenho filhos - conforme dizia Brás Cubas: "Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria..."
______
Notas:
(1) "Um novo companheiro", artigo publicado no Correio da Manhã de 19/04/1941, depois enfeixado em Jornal de Crítica (2." série), Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio, 1943, pp. 294-302.
(2) Na época (1949), exercia Carpeaux o cargo de bibliotecário da Fundação Getúlio Vargas.
(3) Embora se tenha declarado um diletante em matéria musical, Zahar Editores lançaram em 1958, de sua autoria, Uma Nova História da Música, o livro que teve, dentre os seus, maior sucesso de venda, e do qual saiu, em 1967, pela Livraria José Olímpio, 2ª edição.
(4) OMC procedeu a uma rigorosa revisão da nossa produção literária na sua Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira (Rio de Janeiro, Editora Letras & Artes, 1964,3ª edição.
(5) Publicado, afinal, pelas Edições O Cruzeiro, em oito volumes, aparecidos de 1959 a 1966.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ESTRADA



Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Petrópolis, 1921

Manuel Bandeira, Poesia completa e prosa, Nova Aguilar, 1993.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Cesare Pavese traduzido pelo meu amigo Igor de Albuquerque http://boboyun.tumblr.com/page/3

In the morning you always come back

A espiral da aurora
respire com a tua boca
no fundo da rua vazia.
Luz cinza os teus olhos,
doces gotas de aurora
sobre colinas escuras.
O teu passo e o teu sopro
como o vento da aurora
submergem as casas
a cidade freme,
cheiram as pedras —
és a vida, o despertar.

Estrela perdida
na luz da aurora,
rangido da brisa,
tepor, fôlego —
acabou a noite

és a luz e a manhã

In the morning you always come back

Los spiraglio dell’alba
respire con la tua bocca
in fondo alle vie vuote.
Luce grigia i tuoi occhi,
dolci gocce dell’alba
sulle colline scure.
Il tuo passo e il tuo fiato
come il vento dell’alba
sommergono le case.
La città abbrividisce,
odorano le pietre —
sei la vita, il risveglio.

Stella perduta,
nella luce dell’alba,
cigloío della brezza,
tepore, respiro —
è finita la notte.

Sei la luce e il mattino

20 de marzo 1950

domingo, 26 de agosto de 2012

Dois convites de lançamentos, um no Rio de Janeiro e o outro em Salvador. O 1º é da Editora Ímã, da antologia Se7e, organizada pelo incansável André Tartarini, e da qual participo com o conto Diógenes que virou quarta.


O 2º é um lançamento póstumo do grande poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo.


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Retirei o poema abaixo do livro O senso religioso, de Luigi Giussani, tradução de Paulo Afonso E. Oliveira, Ed. Nova Fronteira, 2000. Ao lê-lo lembre-se que não é uma abstração estética, e o autor viveu muito do que descreve.  


Se você não esteve num campo de concentração
Se não o torturaram
Se seu melhor amigo não escreveu uma carta anônima contra você.
Se não o arrastaram para fora de um monte de cadáveres
Escapando milagrosamente do fuzilamento,
Se não conhece a teoria da relatividade
E do cálculo tensorial,
Se não sabe correr de moto a 200 por hora,
Se não assassinou a amada executando a ordem de um estranho,
Se não sabe comprar semicondutores de rádio-receptores,
Se não consegue, esquecendo de si mesmo, gritar “hurra” com todos os outros,
Se não consegue esconder-se em dois segundos de uma explosão atômica,
Se não sabe vestir-se economizando na comida,
Se não consegue viver dentro de cinco metros quadrados
E nem ao menos joga basquete
Então você não é um homem do século XX!


Michajlov, A. “Se non sei stato in campo di concentramento...”, in: AA. VV., Testi letterari e poesie. Da riviste clandestine dell’URSS, op. cit. p.218.  









segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Pedi ao Ronaldo Werneck www.ronaldowerneck.blogspot.com.br autorização para reproduzir o post abaixo sobre a recém falecida poeta Celina Ferreira, que li pela primeira vez num dos volumes dos Pontos de vista, do crítico Wilson Martins. Na última visita ao Rio de Janeiro, numa bela noite na casa de André Seffrin, falamos sobre a poeta mineira praticamente desconhecida.   

Celina Ferreira: uma palestra que não houve


 

A poeta cataguasense Celina Ferreira faleceu no Rio de Janeiro no último dia 05 de agosto. Como sempre desejou, ela foi enterrada no dia seguinte em Cataguases, numa comovente cerimônia onde foram falados alguns de seus poemas, como depois me disse o poeta Joaquim Branco. Dessas falhas imperdoáveis, eu acabei não indo ao cemitério, pois li (mal) o comunicado do próprio Joaquim e entendi que a cerimônia seria no Rio. 

Com a morte de Celina Ferreira, perde a poesia brasileira uma de suas grandes vozes. Em novembro de 1998, ela esteve pela última vez em Cataguases, para o lançamento de seu livro Papagaio Gaio, quando da inauguração do Anfiteatro Ivan Müller Botelho e do Café do

Museu da Eletricidade.  Na ocasião, preparei um texto-palestra que iria ler naquela noite, o que acabou não acontecendo, dada à escassez de tempo. O texto permaneceu inédito até hoje e nem mesmo minha amiga Celina dele teve conhecimento. Eu o publico agora, como última homenagem à grande poeta que se foi.  

Poeta de voz maior  

Nada mais justo que hoje, nesta inauguração do Café do Museu, como amanhã, na abertura oficial do Anfiteatro Ivan Müller Botelho, a Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho preste sua mais que merecida homenagem a uma das maiores vozes da poesia cataguasense, Celina Ferreira.


Para o poeta-crítico Mauro Mota, “Celina Ferreira chega a um gabarito onde podia ficar. Não precisa mais crescer para ser grande.”. Efusivamente saudada por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Affonso Romano de SantAnna, a poeta Celina Ferreira permanece ainda hoje pouco divulgada e praticamente desconhecida do grande público. Isso mais de 40 anos após seu primeiro livro, Poesia de Ninguém, publicado em 1954.


Trazê-la aqui esta noite foi a melhor forma de se homenagear a poeta, de manter viva a sua voz. Seja através de alguns de seus trabalhos, que vou ler a seguir, seja por meio da encenação de seus poemas infantis que o Grupo de Teatro aqui do Museu – o jovem, desafiador e sonoro Gesamtkunstwerk – fará durante o lançamento do “Papagaio Gaio”, a mais recente publicação de Celina, que acontecerá amanhã à tarde, quando da inauguração do Anfiteatro.


Os poeminhas de “Papagaio Gaio” são inéditos e premiados – e a palavra poeminhas aparece aqui sem nenhuma conotação pejorativa. Ela simplesmente remete ao universo da literatura infantil, onde tudo é rima, remo, romã, reino de joviais papagaios e reis gaiatos e gaios. Esses lúdicos poeminhas de “Papagaio Gaio” existem há mais de 20 anos e já tiveram seu valor devidamente reconhecido por troféus como o Prêmio Brasília de Literatura Infantil da Fundação Cultural do Distrito Federal, em 1978, e o Prêmio Estadual de Literatura Infantil, do Rio de Janeiro, em 1971.


Premiados e inéditos. Essa parece ser a sina, não lá muito gaia, da maioria de nossos poetas. É difícil escrever e não ser lido. Principalmente escrever poemas, artefato cujo código de leitura apresenta certas dificuldades para o iniciante. Que maravilha, portanto, que os gaios poeminhas deste livro de Celina não tenham permanecido inéditos. Como inédita não ficou a grande maioria dos poemas que escreveu.


Após Poesia de Ninguém, sua estreia em 1954, vieram Nave Incorpórea (1955), Mundo Encantado (Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da Prefeitura do Distrito Federal, 1957), Invenção do Mundo, O Cavalo Encantado, A Princesa Flor-de-Lótus, todos os três de 1958, Poesia Cúmplice (Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal, 1959) e Espelho Convexo (1973).


Isso sem contar a coletânea Hoje Poemas, editada em 1966, com ilustrações de Guignard, de quem Celina foi a eterna musa. E é exatamente de Hoje Poemas, que ganhei das próprias mãos de Celina em 1970, durante uma das visitas ao seu simpaticíssimo apartamento da Praia do Flamengo, que selecionei alguns dos trabalhos que vou ler. E de onde também, ao que me parece, sua filha Adriana escolheu, por sua vez, seus preferidos, para que eu os lesse.


Celina Ferreira é parte de uma geração cataguasense intermediária entre a eclosão modernista da Revista Verde, nos anos 1920, e a experimentação pós-moderna do concretismo e do poema processo, representada pelos jornais SLD e Totem, que eu e o poeta Joaquim Branco editamos na década de 1960. Embora contemporânea de Francisco Marcelo Cabral e de Lina Tâmega Peixoto, Celina surge para a poesia um pouco depois do lançamento da Revista Meia Pataca, feita por esses dois poetas na Cataguases do final dos anos 1940.


Oswald de Andrade, o grande baluarte do movimento modernista de 22, publicou um livro chamado “Um Homem sem Profissão: Sob as Ordens de Mamãe”. Celina, não. Ao contrário do “Homem” de Oswald, Celina nunca ficou sem profissão. E nem foi homem nem esteve sob as ordens de mamãe. A palavra é sua profissão. Ela nunca deixou de escrever, mesmo afastada por longo período do meio literário. Redatora da Rádio MEC, no Rio, trabalhou também no Jornal do Brasil e no programa “Olho por Olho”, da extinta TV Tupi. Escrevendo, escrevendo, escrevendo.


Mas jamais se descuidando de burilar suas gemas mais preciosas – seus poemas de rara ourivesaria que retomam o verso em toda sua força, muitas vezes resgatando a métrica, o ritmo & melodia que os modernistas haviam abandonado. E com uma dicção extremamente pessoal, única. Trabalho de grande poeta. Como dela falou certa vez o meu amigo Affonso Romano de SantAnna, palavras que assino embaixo: “Nota-se em Celina Ferreira uma constante valorização da palavra, através de colocações do vocábulo em situações únicas, ao sol, à luz, com todas as suas arestas; isto a par de uma revalorização do verso”.


Agora, uma historinha exemplar, só pra eu encerrar este blablablá e passar logo à leitura dos poemas de minha amiga Celina Ferreira. Ainda no mês passado, a Editora Imago, do Rio de Janeiro, lançou uma alentada antologia organizada pelo conceituadíssimo crítico literário Assis Brasil, intitulada “A Poesia Mineira no Século XX”.


Está todo mundo lá. Dos Affonsos, Ávila e Romano, aos Ronaldos: Cagiano, Claver e Werneck. E mais: Drummond, Murilo Mendes, Emílio Moura, Adélia Prado, Henriqueta Lisboa, Francisco Marcelo Cabral, Lina Tâmega Peixoto, Abgar Renault, Laís Correa de Araújo e todos os Verdes – Ascânio Lopes, Enrique de Resende, Guilhermino Cesar, Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco – e também os Brancos, quer dizer, Joaquim & seus irmãos, o Aquiles e o Pedro, o P.J. Ribeiro.


Enfim, toda a poesia mineira desses mil e novecentos que lá se vão. São 75 poetas, 12 deles de Cataguases – o que não deixa de ser uma glória para a cidade, talvez uma das localidades que tenha fabricado mais poemas & poetas por metro quadrado ao longo deste século. Como no poema de Ezra Pound: “êta penca de gente sabida, sô!”. Pois bem, 12 poetas de Cataguases encontram-se na Antologia, eu inclusive. Mas não Celina Ferreira. E por que não? É bem verdade que Assis Brasil esqueceu-se de poetas como Henry Correa de Araújo, Hugo Pontes, Sebastião Nunes, ou o nosso Plínio Filho. Quer dizer, Celina até que está bem acompanhada no rol dos ausentes. Mas que isso não se faz, isso não se faz Seu Assis! Sim, isso assim não se faz com poetas como esses, esses poetas pra vida inteira, esses assim como Celina Ferreira.


Olha, Celina Ferreira,
como dizia o Drummond
naqueles versos antigos,
o Carlos, o seu amigo:


Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.


E chega de besteira. Vamos, vamos reler comigo os poemas de Celina Ferreira, poesia da boa, porque verdadeira. 

Primeiro, os escolhidos por Adriana, a filha de Celina. 


Rondó Muito Louco


Sabeis promessa de vento,
viagens que não podeis.
Sabeis a lua impossível
e o corpo que não tereis.
Ai, tivesse alguma espécie
de tudo que me dareis!
Ilha de Capri não tendes,
então como prometeis?
Anel de areia luzente,
onde é que me encontrareis?
Corpo de relva molhada
por que não me inventareis?
Mar de quanta coisa louca
onde me enlouquecereis?
Sabeis promessa de vento,
Onde e quando cumprireis?


Baladilha sem a quem dar 

Quem quiser me peça versos,
que eu darei, seja quem for.
Que não me peça alegria
nem canções de muito amor.
Quem quiser meus versos tristes
eu darei, seja quem for.
Não sei cantigas de riso,
não sei cantares de amor.
Por isso as minhas cantigas
nunca tiveram senhor.
Eu dou, sem mágoa, meus versos
a quem quer, seja quem for.
Eu reparto em cada verso
um pouco da minha dor.
Mas ninguém me pede versos,
ah! se houvesse pedidor...
Eu daria verso e mágoa
a quem quer, seja quem for!


Canção de fazer-de-conta 

Eu quisera ser bem clara
como o dia transparente.
Feito lírio, feito palma,
feito fruto na semente.
Eu quisera ser bem pura
como a flor que ninguém sente.
Faze-de-conta, me achaste
como fui antigamente.
Faze-de-conta, sou neve,
brancura na tua mente.
Faze-de-conta eu sou como
me queres interiormente.
Faze-de-conta, mas faze
que aconteça de repente,
que eu me torne branca, branca
como tu me tens na mente.


Como se vê – ou melhor, se ouve –, Celina trabalha com grande mestria a redondilha maior, o verso de sete sílabas, tão comum e batido em nossa língua, mas que nela surge com o brilho de um raro ritmo, essas redondilhas que ondulam em seus poemas numa cadência nova e altamente melódica. Isso sem contar a beleza de versos como aquele “Eu quisera ser bem clara”. Um pretérito-mais-que-perfeito: perfeitíssimo.  

Pois é, Chance & Choice/Acaso e Escolha, o princípio estatístico da criação, pode aqui ser aplicado para a poesia, um lance do acaso, como queria Mallarmé. Trabalhar o acaso, no caso de Celina, ou o acaso da escolha, como ocorreu comigo ao reler os seus poemas. De início, selecionei um texto sobre Rosário Fusco, que ela enviou para Marginais do Pomba, a antologia que eu, Joaquim Branco e Fernando Cesário organizamos em 1985, com textos de escritores cataguasenses de várias gerações. De certa forma, Celina nunca deixou de estar à margem, como já vimos no caso da Antologia do Assis Brasil. Nada mais justo que ela figurasse com todas as letras em Marginais do Pomba.

Seu texto chama-se P(Rosário), e traz já no título um inventivo jogo de palavras: prosa, prosário, prosa/rio, pro rosário. Lembro-me dela um dia me falando, não sem uma ponta de espanto, de quando conheceu Rosário Fusco, “aquele homem imenso, todo o uísque, todas as palavras desmedidas”. Vamos lá, então ao seu



“P(ROSÁRIO)


“Iam-me prevenindo sobre Rosário, que não me espantasse, não medisse suas palavras ou me desencantasse com os absurdos. Ele, o próprio absurdo, rosa e rio, charada simples para quem leu Freud, mesmo a galope. E dois amigos me amparavam, temendo minha ingenuidade feita de bloqueios e sabidas defesas.

“Nada disso. Eu ia apenas cair num poço de horror e poesia, fezes fluindo morosamente entre palavrões cálidos, no puro texto rosafusco, limpo em sua agressividade humilde, quase pesarosa. Rosário falava num linguajar direto e sem retoques e eu procurava disfarçar meus enganos, decidida a chamar-lhe Fusca, não entendendo meus atos falhos e exclamando a todo instante: “Freud, que que é isso?”. 

“Flor de hemorróidas sangrentas, náusea e pânico, verso branco inserido num contexto sujo, Rosá, rosácea, rosa curtida em puro uísque escocês, que eu me servisse, perdão, eu não desejo beber. 

“E Fusca, desculpe-me, Fusco ousado, usado, agora é fácil entender. Rosário escapa de novo, que Freud vá para o diabo. E foram-se depressa, Freud, Jung, Adler. Rosário ficou, falo imenso exorbitando suas funções, punindo a terra e amando-a, trágico e impotente para desfrutar-lhe todos os horrores. 

“Eu caía de nuvem em nuvem, descobrindo íntimas crateras e receosa de minha vulnerabilidade. E mais: sabendo que em meus sonhos as imagens translúcidas indicariam um único roteiro – o poço escuro, soterrado pelo medo, contendo mil tesouros de luxúria.

Rosário dormia entre demônios louros, o uísque gotejava da garrafa em decúbito, meus amigos me acompanhavam calados ao regresso de mim mesma.”.


Como podem ver, o texto da Celina é prosa-poema, proeza, proesia. Vamos agora aos poemas que selecionei, por minha conta e risco. Chance & Choice. Sorte & Seleção. Ou Seleção da Sorte?


De
 “Morte Menor”
 in
Rio do Sono 

Enquanto a noite, uma rosa
de fina penugem rala
se adensa mais hora em hora
em tempo e vivida fala;
enquanto rosa, essa noite
que a todo tempo se gasta
e em vivência não pode
construir sua clara
estrutura de silêncio
quase sempre fragmentada,
se noite ou rosa a um tempo
mais se adensa e mais se aclara:
enquanto prossegue pouca,
apenas noite, mais nada,
ou simplesmente uma rosa
ou mais ainda: palavra;
não é o tempo que foge
nem a noite que se gasta:
é o corpo escasseando
e a vida ficando rala.
Mais ainda: é nossa pressa
que mais fundo nos desgasta.
É a rosa gente finando
a sua noite tão parca. 

Ainda de
“Morte Menor” 

Tenho de matar meu semelhante.
Mãos à obra.
Quem me lava o espírito,
quem me devolve, intacto,
meu sossego? Quem ouve meu grito
de desespero?
Tenho de matar meu semelhante.
Mãos à obra.
Os bons passarão
pelo fio de prata.
Os maus ficarão.


A Esquecida 

Quando vim a este mundo,
não por mim – eu vim mandada –
trouxe um destino comigo.
Mas passei por tantas nuvens,
me molhei de tanta chuva,
me perdi em muitos ventos,
virei poeira de estrada,
lírio, rosa, espinho, terra,
que esqueci minha mensagem.
Procuro renovar:
pedra, sangue, cal, areia,
preciso de definir-me
e encontrar o meu perdido.
Choro sangue todo o sempre
quando estou entre oprimidos.
Sinto a fome dos famintos,
sofro a dor dos humilhados,
me consumo no momento.
Minha mensagem é dor.
Eis-me na areia que invento,
areia de um mar profundo:
mar de mistério. Eu, enigma,
consigo descer ao fundo.
Meu corpo verde flutua,
minha alma sobe, incolor.
E no fundo, outro infinito,
mais mergulho, mais atinjo
alturas desconhecidas.
Asas brancas me tocaram.
De folhas faço meu ninho
pelo prazer de fugir.
Nesse voo ilimitado,
humano não me corrompe.
Quem me busca, não me atinge,
quem me atinge é perseguido
como irmão, foge comigo.
A chuva cai. Vai lavando
tanto pó acumulado
do tempo que me antecede.
As imagens vão gritar
e eu, lembrada de mim mesma,
serei humana de novo.
Quero cumprir meu destino.
Não por mim. Eu vim mandada.


Embalo 

Serra serra meu menino
serra serra teu destino
serra a tua professora
serra a escola serra o pássaro
serra a gaiola vazia
serra serra já serrou.
Serra a estrela vespertina
a cabeça do fantoche
os brinquedos do gigante
serra o São Jorge da lua
serra a tua namorada
serra serra já serrou.
Serra a mão que escandaliza
serra o pé que pisa torto
serra a cabeça funesta
serra o doido pensamento
serra a fome serra o corpo
serra o lótus serra o abismo
serra serra não serrou.


Anunciação

O verbo, crio-o devagar, no corpo,
como a flor e a palavra: pouco a pouco.
Protegido em redoma não de vidro,
mas de angústia e de sangue o seu tecido.
Vestimenta de carne, pois de corpo
é o verbo que anuncio, hoje tão novo
como o primeiro homem foi nascido
da palavra semente, do seu grito.
Como o primeiro homem no seu lodo
é o verbo resolvido no meu corpo.
Verbo crescendo lesto, arredondado
como o primeiro fruto sazonado.
Corpo e navio, levo uma pergunta
que é palavra, destino, e coisa, e fruta.
Palavra, pois é verbo do meu verbo
que humilde e pressurosa hoje percebo
e guardo aflita, e exausta, e tensa, enquanto
não romper minha carne seu quebranto
de verbo libertado do meu ser,
pronto para a aventura de viver.


E foi com o verbo libertado do seu ser – digo agora, após sua morte – que Celina Ferreira se foi. Pronta para a aventura de desviver.