quarta-feira, 25 de abril de 2012

BORGES E PRUDHOMME
           
Deparei-me com o soneto de Borges no livro El outro, el mismo, na sua obra poética completa. E segundo o autor argentino era o livro que mais apreciava. O soneto de Sully Prudhomme retirei do Itinerário de Pasárgada, de Bandeira; cotejei com uma edição virtual e há algumas ligeiras mudanças de pontuação, fora um erro estranho de digitação. Coisas da internet. Conservei a de Bandeira. O “natura” do 10º verso fica, além da facilidade rímica, também pelo sabor de contração comum ao século do poeta francês. O nome do filósofo no final do soneto fica Bento mesmo por causa da métrica, além de condizer com o espírito do poema. O de Borges ficou em decassílabo, e o de Prudhomme em alexandrino.    

ESPINOSA

As translúcidas mãos desse judeu
que lustram na penumbra seus cristais
e essa tarde morrendo é medo e breu.
(As tardes dessas tardes são iguais.)

As mãos e o seu espaço de jacinto
que empalidece no confim do Gueto
quase inexiste para esse homem quedo
que está sonhando um claro labirinto.

Não o perturba a fama, esse parelho
de sonhos com os sonhos de outro espelho,
nem o amor temeroso dessas virgens.

E livre da metáfora e do mito
lustra um árduo cristal: o infinito
mapa d’Aquele dono das origens. 


SPINOZA


Las traslúcidas manos del judio
labran en la penumbra los cristales
y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)

Las manos y el espacio del jacinto
que palidece en el confín del Ghetto
casi no existen para el hombre quieto
que está soñando un claro laberinto.

No lo turba la fama, ese reflejo
de sueños en el sueño de outro espejo,
ni el temeroso amor de las doncellas.

Libre de la metáfora y del mito
labra un arduo cristal: el infinito
mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.   

  Jorge Luis Borges


UM HOMEM BOM


Era um homem tão doce, de saúde frágil,
Que de tanto polir os cristais de mil lentes, 
Pôs a essência divina numa fórmula ágil,
E o mundo apavorado o viu como um descrente.

O sábio demonstrou com um simples adágio
Que tanto o bem quanto o mal são velhos dementes,
E os mortais são fantoches que devem seu ágio
Aos fios necessários de mãos descontentes.   

Admirador devoto da Santa Escritura,
Não poderia ver um Deus contra a natura,
Ao qual a sinagoga se opunha raivosa.

Longe dela, polia os cristais de mil lentes,
E socorria os sábios contando astros e entes. 
Era um homem tão doce, Bento de Espinosa. 

UN BONHOMME

_C’était un homme doux, de chétive santé,
Qui, tout en polissant des verres de lunettes,
Mit l’essence divine en formules très nettes,
Si nettes, que le monde en fut épouvanté.

 _Ce sage démontrait avec simplicité,
Que le bien et le mal sont d’antiques sornettes,
Et les libres mortels d’humbles marionettes
Dont le fil est aux mains de la nécessité. 

_Pieux admirateur de la sainte Écriture,
Il n’y voulait pas voir un Dieu contre nature; 
A quoi la synagogue en rage s’opposa.

 _Loin d’elle, polissant des verres de lunettes,
Il aidait les savants à compter les planètes.
C’était un homme doux, Baruch de Spinoza.

Sully Prudhomme

Estas traduções sairam na http://www.verbo21.com.br/v5/

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Do poeta argentino Alejandro Nicotra, trouxe Poesía (1976-1993), Alción Editora, Córdoba, 1994, que abarca os livros “Puertas apagadas”, “Lugar de reunión”, “Desnuda musa” e “Hogueras de San Juan”; também o livro De una palabra a otra, Ediciones Del Copista, 2008. Estas edições são uma beleza, sóbrias e charmosas, coordenadas pelo poeta, crítico e tradutor Pablo Anadón http://eltrabajodelashoras.blogspot.com.br/

A lírica de Alejandro Nicotra possui uma aguda contemplação da natureza de sua Córdoba natal. Trechos da orelha por Raúl Gustavo Aguirre: “A sabedoria desse poeta consiste em dar conta com palavras cuidadosas, estremecidas, fiéis, dos vislumbres deste mundo: a mulher, um astro, o fogo, um anoitecer. Sinais de que talvez não sejam outras as acendidas pelos deuses para sugerir-nos, com as palavras dos que verdadeiramente falam, em que direção podemos encontrar, se não as chaves, pelo menos as perguntas que importam.” Para quem desejar ouvir o poeta recitando El pan de las abejas aqui: http://www.youtube.com/watch?v=M6iqgcG0rpk

No blog http://www.fenixpoesiaycritica.blogspot.com.br o leitor encontrará mais poemas de Alejandro Nicotra, além de um bom material de poetas, críticos e tradutores publicados ou não pelas Ediciones Del Copista. Agradeço ao Pablo Anadón pela generosidade de poder publicar as traduções. Como disse para ele, o espaço do meu blog é quase anônimo, mas não deixa de ser uma forma de apresentar esse grande poeta argentino.   
    
Alguns poemas do livro De una palabra a otra:

VI
O ADEUS

Como foi, pergunto-me,
aquele adeus:
                           igual a uma pálpebra
ou a noite descendo
sobre a cidade?


VI
EL ADIÓS

Cómo fue, me pregunto,
aquel adiós:
                         igual a un párpado
o la noche cerrándose
sobre la ciudade?



X
NOTA DE MARÇO

Diante da janela
quase irreal
                     o abismo
aberto pela folha ao desprender-se
da árvore —

e sua clara vertigem.


X
APUNTE DE MARZO

Ante la ventana
casi irreal
                  el abismo
abierto por la hoja al desprenderse
     del árbol —

y su vértigo claro.


XIV
TRINO

A neve de setembro ainda no cume
e já na romãzeira a flor.
Ouça o trino:

                  o que engasta em teu ouvido,
à maneira de ilusório brinco,
ária de ressurreição. 

XIV
TRINO

La nieve de setiembre aún en la cumbre
y en el granado ya la flor.
Oyes el trino:

                  el que engarza en tu oído,
a manera de ilusorio zarcillo,
aria de resurrección. 



XVII
ANOTAÇÃO DE JANEIRO

a Olga

Anteontem,
fúria de fim de mundo, a tormenta;
e esta manhã
o equilíbrio
                        do colibri
sobre a flor:             

clara tua mão 
na luz, parecia,
resguardar o prodígio.      


XVII
ANOTACIÓN DE ENERO

a Olga

Anoche,
furia de fin de mundo, la tormenta;
y esta mañana
el equilibrio
                        del colibrí
sobre la flor:

                         clara tu mano
en la luz, parecía,
resguardar el prodigio.



XXXII
ACONTECE

a Horacio Castillo

Como no centro ambíguo
de um sonho ou uma história relembrados,
aflora, às vezes,
a ilusão, o fantasma
do real.
              Seus arredores,
— rostos, lugares, vozes —
convergem — e se ata
ao destino:
                     área irritável,
se a tocas.
                   Porém,
aí te fala, estava
te esperando, o poema.     

XXXII
SUCEDE

a Horacio Castillo

Como en el centro ambiguo
de un sueño o una historia recordados,
aflora, a veces,
la ilusión, el fantasma,
de lo real.
                   Sus alrededores,
— rostros, lugares, voces —
convergen — y se anuda
el destino:
                    zona irritable,
si la tocas.
                      Pero,
ahí te habla, estuvo
esperándote, el poema.



Do livro Poesía (1976-1993):

O PÃO DAS ABELHAS
           
(Em memória de A. E. A., poeta)

O pão das abelhas, o mel de todos.

Sopra o tempo
sobre a galeria de tua casa: ninguém,
somente a luz surda, vazia,
entre pilares partidos.
Nem tua sombra nem o rumor do poema.

(“A água com cachos e a luz com abelhas”...)
Pátio sem parras. Seca cisterna.

A mãe passa com um prato de mel,
ontem.

Vi as colmeias devastadas
e no ar de março,
no azul do espaço,
a fumaça que subia dos favos.

Vi o homem mascarado,
as luvas impuras,
e o povo do vento
e da flor:
                  gota a gota,
os pequenos
cadáveres.

Vi o sapo gordo
saciado de saques.

Sopra o tempo
desde a fresca sombra das parras,
os cântaros, as flores. (O frêmito
e a luz das abelhas.) Ouço
tua voz.

Um menino passa com um prato de mel.

Vi as colmeias devastadas,
o fumo pelo ar de março.

E vi,
entre as ruínas e a sombra,
o pão feito de sol;
                               quero dizer
— o que sabes — vi tua morte
e tua vida. (A galeria arruinada
de tua casa, as páginas
douradas.) E minha vida
e minha morte,
provavelmente iguais.

Um homem passa com um prato de mel.

O pão das abelhas,
o mel de todos.


EL PAN DE LAS ABEJAS
(En memoria de A. E. A., poeta)

El pan de las abejas, la miel de todos.

Sopla el tiempo
sobre la galeria de tu casa: nadie
sino la luz sorda, vacía,
entre pilares rotos.
Ni tu sombra, ni el rumor del poema.

(“El água con racimos y la luz con abejas”...)
Patio sin parras. Seco aljibe.

Ayer,
la madre pasa con un plato de miel.

He visto las colmenas devastadas
y em el aire de marzo,
Eespacio azul,
el humo que subía desde los panales.

He visto al hombre enmascarado,
los torpes guantes,
y el pueblo de la brisa
y de la flor:
                       gota a gota,
los pequeños
cadáveres.

He visto al sapo gordo
Saciado de saqueo.

Sopla el tiempo
desde la fresca sombra de las parras,
los cântaros, las flores. (El temblor
y la luz de las abejas.) Oigo
tu voz.

Un niño pasa con un plato de miel.

He visto las colmenas devastadas,
el humo por el aire de marzo.

Y he visto,
entre las ruinas y la sombra,
el pan hecho de sol;
                                    quiero decir
— lo sabes —: vi tu muerte
y tu vida. (La galeria rota
de tu casa, las páginas
doradas.) Y mi vida
y mi muerte,
seguramente iguales.

Un hombre pasa con plato de miel.

El pan de las abejas,
la miel de todos.



ELA ESTARÁ DE PÉ NA LUZ


Ela estará de pé na luz,  
feito uma estátua com uma pomba no ombro
— a pomba do perdão e do desejo —
mas para os outros não mais que uma moça.

Como a alva, terá vindo
de um frêmito da sombra ou das pálpebras.

Então o homem não clamará a nenhum anjo
nem temerá a nenhum fogo em sua noite.
Tão pouco pedirá às janelas o céu. 

Essa visita culminará todos os dons.

E ao fim, ele saberá dizer adeus,
os lábios mui perto da esperada cabeça,
quando ela se inclinar sobre os seus olhos.


ELLA ESTARÁ DE PIE EN LA LUZ


Ella estará de pie, en la luz,
igual a una estatua con paloma en el hombro
— la paloma del perdón y el deseo —
pero una muchacha, no más, para los otros.

Como el Alba, habrá venido
de un temblor de la sombra o los párpados.

Entonces el hombre no clamará a ningún Angel
ni temerá a ningún fuego en su noche.
Tampoco pedirá el cielo a las ventanas.

Todos los dones colmará esa visita.

Y al fin, él sabrá decir adiós,
los labios muy cerca de la cabeza esperada,
cuando ella se incline sobre sus ojos.