Dois poemas de Érico
Nogueira.
1.
Entre as ruínas, ai, de arco e busto,
eu busco ouvir além do meio físico:
ouvir o que se entrega a um alto custo
a quem, como eu, é carne e pouco espírito.
Se me surgisse em riste ou em decúbito
a via donde vim e vou com gosto,
meu coração tão flácido, de súbito,
levantaria sangue para o vôo.
Ou seja: o espírito, que tenho pouco,
e vou perdendo quanto mais existo,
onde estará, se Roma é este poço
de secreções e beijos de granito?
4.
Instrui — a mente não —, instrui o instinto
na língua, se sutil, mais carregada:
em que modulações do tom mais limpo,
cílios da pálpebra mais comportada,
trejeitos da cabeça mais centrada,
têm intenções, têm múltiplo sentido:
conforme esteja quem conforme a lua
amplia ou diminui o que te mostra,
ajeita a tua mão à sua luva
e ataca, ou pela frente, ou pelas costas.
A ocasião se colhe como a uva
que a chuva não encharca, e o sol não tosta.
Érico Nogueira, Dois, É Realizações, 2010, p.23,26.
quarta-feira, 27 de março de 2013
sexta-feira, 22 de março de 2013
Soneto
de António Ferreira (1528-1569),
poeta português. A grafia é a encontrada na edição indicada abaixo.
3
Despojo
triste, corpo mal nascido,
escura
prisão, e peso grave,
quando,
rota a cadeia, e volta a chave,
me
verei de ti solto, e bem remido?
Quando,
c’o esprito pronto, aos céus erguido,
(depois
que est’alma em lágrimas bem lave)
batendo
as asas, como ligeria ave,
irei
aos céus buscar meu bem perdido?
Triste
sombra mortal, e vã figura
do
que já fui, uns dias só sostida
daquele
esprito por quem cá vivia,
quem
te detém nesta prisão tão dura?
Não
viste a clara luz, a santa guia,
que
te lá chama à verdadeira vida?
António Ferreira, Poemas lusitanos. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 2000, p.80.
segunda-feira, 18 de março de 2013
O ENTE AMADO DE EMILIANO
Teu cavalo morto
Renascerá principalmente
Com o verão nas árvores
E não estarás oculto
Como um salteador de estradas
Ou um solitário irredimível.
Teu cavalo morto
Renascerá após a agonia dos bois
Nos currais ensolarados
E saberás distinguir
Essas questões difíceis que propõem
A qualquer homem vivo.
Teu cavalo morto
Renascerá à semelhança de um deus
Deslumbrante e amoroso.
Envelhecerás sozinho e triste
Até que o ar sufoque os corvos e os livros,
Comprimindo a cruz ao sol.
Teu cavalo morto
Renascerá como nunca pensaste,
E logo ficarás tranqüilo.
(1968)
José Carlos Targino. Cadernos de poesia nº8. Recife: Fundarpe, 1997, p.18.
sexta-feira, 15 de março de 2013
Topografia
do burgo de Olinda à distância de quatro séculos, a partir de um telescópio
montado no campanário da Igreja da Sé, com pedidos de desculpas aos mapas e
teses dos geógrafos, bem como ao teodolito e demais instrumentos de trabalho
dos senhores arquitetos e engenheiros.
É um volume de sonho e luz aberto
nas prateleiras do ar,
aos olhos revelando um mundo
impresso
em água e eternidade, em brisa e
mar.
E encanto antes de tudo, só encanto
para quem a conheça:
e, sobretudo, o medo que esse
encanto
um instante após nascer desapareça.
Evadida do tempo, em nós desliza
e fica, como a lembro,
à flor do mar, dourada pela brisa
e o ouro dos cajueiros de setembro.
Seria, na lembrança, outra paisagem
ao mundo acrescentada,
não fosse o mangue que enferruja a
aragem
na qual, por ser encanto, está
pousada.
Rasurando a memória, se folheio
as lembranças extintas,
evita, silenciosa, os meus receios
e altera o mundo sem que o mundo
sinta.
O sonho extinto em quem, sonhando,
veja
mesmo extinto não finda
que o olhar sonha quando a lembra,
acesa,
e quando a esquece sonha mais ainda.
Jaci
Bezerra. Linha d’água, 2007. Cia
Editora de Pernambuco.
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