sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A ETERNA PELEJA: CENAS


Quando Dante entrou na noite
e burilou meus dilemas
havia deuses em cena
treinando a arte do coice.

Andei pelos arredores
e vi nos muros cravadas
as vidas dos camaradas
com seus retratos e horrores.

E vi meus próprios horrores
em mil perfis e fracassos
ornados com farpas, trapos
lembrando Picasso, em cores

que a Existência traduz.
E um deus, como se um cão não fosse,
partiu ao meio com um coice
meu ser em forma de cruz.

A noite ficou mais noite
e então regressei a Dante
e disse-lhe: ó bardo, cante!
E o florentino cantou.

Cantou e seu alto canto
naquele inferno ecoou.
Meu ser partido, no entanto,
partido estava e ficou.

E assim, em tom solene,
pedi-lhe que me escutasse.
Olhou-me, com ar de pena,
mas permitiu que eu cantasse.

Cantei, cantei, cantei tanto
que a noite se dissipou.
E o deus, para meu espanto,
entrou em cena e falou:

"Aqui, tudo me pertence:
a noite, o dia, o abismo.
E quando escoiceio e cismo,
ninguém ou nada me vence.

E aviso: acabou-se o prazo
para que se vão embora.
Não reino aqui por acaso:
da Terra posto pra fora

embaixo de tapa e coice
fundei aqui meu reinado.
E sempre que a morte trouxe
a mim um homem versado

mandei-lhe embora sem mais.
Se move com as próprias pernas,
propala coisas modernas
e me atrapalha demais.

Por isso é que ordeno: fora!
Somente os comuns convêm.
São seres que a qualquer hora
se portam como Ninguém."

Falou o deus, regressamos.
E eu perguntei a Dante:
E agora, pra onde vamos?
E o bardo, naquele instante,

após hesitar, me diz:
"Melhor não voltar à Terra.
Prefiro errar infeliz
neste cenário pós-guerra

que o Limbo nos oferece."
E então seguimos, chorando,
sem rumo, balbuciando
os restos de alguma prece.

Roberval Pereyr. 110 Poemas. Salvador: Quarteto, 2013, pp.150-152