quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A VOZ E A BÚSSOLA
A Jaci Bezerra

Falo de um ser longínquo
de que só me chegam partes
-- a chuva, a claridade, os ventos:
o mesmo que faz que as pedras
se reúnam em tabuleiros
e permaneçam no solo
sob um teto de andorinhas.
A ele procuro, às vezes,
abrindo caixas, gavetas
ou derramando o vazio
que escorre do bolso avesso:
nalgum papel anotado
aponta quais os desejos,
o que pretende por troca,
sendo moeda meu corpo.

A ele talvez eu chegue
pela soma
de quanto prendo nas órbitas,
do curso comum das águas:
devolvendo o ar ao ar,
o voo e o nado inclusos
às aves que me procuram
e aos peixes (quantos reclamam):
para chegar até ele,
diariamente exercito
a ponta final das retas:
o alto da minha vértebra
retém ao chão a galáxia
de meu giro já sem curvas.

Falo de um ser longínquo
em órbita sobre si mesmo
-- o que acende e apaga,
em seu curso, meu semblante.

Audálio Alves. Canto da matéria viva. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1970, p.54-55