Regionalismo alegórico em “Auto da Romaria”,
de João Filho
Por Emmanuel Santiago
João Filho supera as limitações do regionalismo
literário por meio de uma visada alegórica sobre o universo regional.
Com Auto da romaria,
João Filho se consolida como uma das mais consistentes vozes líricas da
literatura brasileira contemporânea. No livro, a trajetória pessoal do eu
lírico principal, rememorada, cruza-se com o percurso histórico e geográfico da
romaria que ocorre anualmente em Bom Jesus da Lapa, cidade natal do autor no
interior baiano. Contudo, a própria romaria adquire um significado outro,
alegórico, apontando para o caminho da transcendência. Nisso consiste seu regionalismo alegórico,
em que se fundem a vertente regionalista de nossa literatura e a tradição
literária ibérica.
Antonio Candido observa que, nos países centrais — cultural e
economicamente falando —, o regionalismo nunca passou de fenômeno episódico, ao
passo que, apenas nos países atrasados ou de desenvolvimento tardio,
estabeleceu-se como tendência e produziu obras relevantes. A importância da
temática regionalista esteve na elaboração dos elementos da realidade local,
funcionando como contrapeso à adesão a modelos literários estrangeiros de maior
prestígio cultural. Entretanto, com a modernização dos países periféricos, o
regionalismo teria perdido vigor criativo e se tornado obsoleto. A
revitalização dessa temática, então, ficara a cargo de autores que, por meio de
uma forma inovadora, mesclavam a matéria regional a questões existenciais que
ultrapassavam as circunstâncias histórico-sociais imediatas do universo
representado. É a isso que o crítico chama de super-regionalismo e cujo principal
representante na literatura brasileira seria Guimarães Rosa[1]. Para as finalidades deste ensaio, é
preciso considerar que, embora as reflexões de Candido restrinjam-se à prosa,
tivemos, no Brasil, uma poesia marcada pela tematização das circunstâncias
regionais. É o que vemos na obra de Jorge de lima em sua fase mais tipicamente
modernista, assim como em Joaquim Cardoso e João Cabral de Melo Neto.
João Filho é um desses autores que conseguem superar as limitações
da temática regionalista, mas por meios diversos do que se verifica em
Guimarães Rosa. Para Candido e outros intérpretes, na ficção rosiana, a
superação da natureza documentária do regionalismo se dá, entre outros fatores,
pela incorporação de procedimentos vanguardistas, sejam eles linguísticos,
sejam narrativos. À primeira vista, a poesia de João Filho vai em sentido
oposto: o da retomada das formas fixas. Em Auto da romaria, há a hegemonia do verso
metrificado, além da presença de formas como a coroa de sonetos, a sextina,
a terza rima,
o romance ibérico etc. Mas não nos deixemos enganar por esse tradicionalismo,
pois o poeta maneja o verso de maneira maleável e versátil, rompendo estrofes
como unidades semânticas (atravessando o discurso de uma estrofe para outra) e
tirando grande proveito das rimas toantes. Além disso, as imagens poéticas,
criando associações inusitadas, denunciam uma sensibilidade moderna.
Até mesmo a definição do livro como “auto” expressa a ambivalência
entre o moderno e o tradicional. O auto é uma forma do gênero dramático, de
origem medieval e ibérica, intimamente ligada à cosmovisão e à moralidade
cristãs, mesmo quando seu assunto é profano. No entanto, Auto da romaria não
é, de fato, um auto. Trata-se de uma obra lírica, mas que, configurando vozes
diversas, rompe com o monologismo do gênero lírico e aponta para a estrutura
dialógica do drama. O eu lírico, que, na maioria das vezes, simula uma
perspectiva autoral, assume diferentes personas vinculadas
à romaria. Como se sabe, a dissolução das fronteiras entre os gêneros é um dos
principais índices da modernidade na literatura.
Tampouco há um enredo que unifique os poemas e as diferentes
partes do livro, como seria de se esperar de uma peça de teatro. Contudo, o
próprio auto não costuma seguir as regras de unidade de ação do teatro
clássico, sendo composto por cenas que são independentes entre si, embora girem
em torno de um mesmo ensinamento moral (pois trata-se de uma forma que possui
uma dimensão didática). O princípio da variedade construída com base numa unidade
conceitual também preside a composição do livro de João Filho, ainda que tal
variedade seja potencializada pela fragmentação própria ao impulso lírico. Como
eixo do conjunto, servindo-lhe de elemento de coesão, está a romaria e o
universo ao mesmo tempo íntimo e social que a circunda.
Em Auto
da romaria, o particularismo da temática regionalista é suplantado
por duas vias: a primeira delas é a maneira como a ambientação regional se
mistura às recordações do eu lírico principal, cruzando a história da romaria
com o universo familiar do autor. Destaca-se, como metáfora do trabalho da
memória, a imagem do “menino contínuo”, procurando atar, conforme dizia certo
narrador casmurro, as duas pontas soltas da vida: a maturidade e a juventude.
Em “O aéreo testamento” (terceira seção do poema “Em torno da venda”), o legado
imaterial deixado pelo menino nada mais é do que a pessoa que o eu lírico se
tornou — “o menino é o pai do homem”, recorrendo a mais uma referência
machadiana.
A segunda via por meio da qual João Filho suplanta o
particularismo regionalista relaciona-se ao modo como, no livro, os índices da
realidade podem ser lidos por uma chave transcendental, o que eleva a vivência
imanente ao plano da experiência religiosa. É o que se vê no poema “A Gruta e o
Morro”, em que a “áspera beleza da ardente paisagem” simboliza o árduo caminho
da salvação por meio da ascese (essa “estreita senda”); a luz escaldante do
sol, por sua vez, é a emanação da Verdade, ensinando sua “drástica doutrina”,
enquanto o Morro representa a ideia de ascensão espiritual (assim, a Gruta,
santuário e destino da romaria, é um correspondente terrestre do Paraíso):
Caminho de pedras
que o sol incandesce;
fantástico perfil
— o morro aparece,
e a vista se eleva,
na quentura de agosto.
Caminho de pedras,
paixão não é queda.
que o sol incandesce;
fantástico perfil
— o morro aparece,
e a vista se eleva,
na quentura de agosto.
Caminho de pedras,
paixão não é queda.
O “fantástico perfil” do Morro remete a duas imagens conhecidas da
tradição literária. A primeira delas se encontra no primeiro canto d’A divina comédia, quando Dante, após vagar pela selva
escura do pecado, vislumbra o monte do Purgatório, que conduz ao Paraíso:
Mas quando ao pé de um monte eu já chegava,
tendo o fim desse vale à minha frente,
que o coração de medo me cerrava,
tendo o fim desse vale à minha frente,
que o coração de medo me cerrava,
olhei pra o alto e via a sua vertente
vestida já dos raios do planeta
que certo guia por toda estrada a gente.
que certo guia por toda estrada a gente.
Tornou-se a minha angústia então mais quieta
que no lago do coração guardara
toda essa noite de pavor repleta.
que no lago do coração guardara
toda essa noite de pavor repleta.
A outra imagem refere-se às “furnas montanhosas” da cena final da
segunda parte do Fausto,
de Johann W. Goethe, através das quais a alma do protagonista ascende às
esferas celestes. Tanto A
divina comédia quanto o Fausto estão repletos de imagens
alegóricas, e o livro de João Filho parece filiar-se a essa tradição. Em “O
monge e o monsenhor”, confirmando tal tendência, o Morro é recoberto de
inúmeras conotações: “O Morro é a pedra que sonha,/ calcário onírico e ar”; “O
Morro é a pedra que pensa,/ o seu calcário real, o azul e branco da crença/ é
sua fé mineral”, e por aí vai.
No poema “6 de agosto”, a procissão anual do Bom Jesus da Lapa
torna-se um correspondente (ou alegoria) da busca da alma pela Graça divina.
Por isso, ela transborda além do tempo e do espaço, isto é, além das
circunstâncias particulares do universo regional:
Não repare no caudal
que transborda de outras épocas,
nas multidões que deslizam,
misturando tantas cepas,
que acompanham o andor
em romaria sem pressa.
que transborda de outras épocas,
nas multidões que deslizam,
misturando tantas cepas,
que acompanham o andor
em romaria sem pressa.
(…)
Mas guarde um quadro completo
do caudal sem calendário,
apesar do mês de agosto
ter o seu dia esperado.
Quem espera sempre alcança,
verá que não mente o adágio. (grifos meus)
do caudal sem calendário,
apesar do mês de agosto
ter o seu dia esperado.
Quem espera sempre alcança,
verá que não mente o adágio. (grifos meus)
A procissão ocorre num tempo fora do tempo, onde se cruzam as
reminiscências da perspectiva autoral (experiência individual), a tradição da
romaria (experiência social) e, sob uma perspectiva cristã, o anseio de toda
alma pela salvação (experiência universal). De modo semelhante, o rio São
Francisco, objeto de um poema em duas seções, também extrapola sua existência
imanente, figurando como espelho da eternidade:
Eis o rio soturno que medita
sob a luz do Cruzeiro do Sul; vai
pela planície dupla — a eterna e a finita —
sob a luz do Cruzeiro do Sul; vai
pela planície dupla — a eterna e a finita —
e constela as imagens que contrai.
Aqui e lá em cima, as quatro margens
sustentadas por linhas que não caem:
Aqui e lá em cima, as quatro margens
sustentadas por linhas que não caem:
naquelas tem-se a plenitude da viagem
e, nessas duas, seu espelho: São Francisco.
(…)
A planície dupla sobre a qual o rio corre é constituída por seu
leito (a terra) e pelo céu (aqui assumido em sua conotação metafísica).
“Naquelas margens”, as de cima, vislumbra-se “a plenitude da viagem”, que é a
eternidade; cá embaixo, temos o rio mesmo, que serve àquela de reflexo, de
representação sensível. O poema, então, assume a forma dialógica, com o
barqueiro José relatando ao eu lírico a história de sua conversão religiosa
após uma vida de desvirtuamento. O barqueiro, sugerindo a figura de Caronte, é
aquele que trafega entre as duas margens da existência: a vida e o Além, a
imanência e a transcendência. Em seu relato, temos o que pode ser considerado
uma atualização da Máquina do Mundo, objeto fabuloso presente no décimo canto
d’Os lusíadas,
de Luís Vaz de Camões:
(…)
entrei na dimensão da lucidez;
algo se deu, e numa peça toda inteira
— eu subia de barco na contrafluidez… —
algo se deu, e numa peça toda inteira
— eu subia de barco na contrafluidez… —
meus caminhos se ataram na algibeira
do coração, quedei no centro da certeza;
algo se dá — a gota verdadeira,
do coração, quedei no centro da certeza;
algo se dá — a gota verdadeira,
não posso descrever com tal justeza,
se é que outros fulgores consegui,
o verbo vem da graça e da beleza
se é que outros fulgores consegui,
o verbo vem da graça e da beleza
e foi o Amor sem véus que disse: aqui!
O coração do tempo revelado,
a clareza total descrita em si,
O coração do tempo revelado,
a clareza total descrita em si,
(…)
Apesar da matriz camoniana da passagem, parece haver uma relação
intertextual mais estreita — por oposição — com o poema de Carlos Drummond de
Andrade, intitulado justamente “A máquina do mundo”, do livro de 1951, Claro enigma. Neste
poema, o eu lírico drummondiano, confrontado com a Máquina do Mundo numa
estrada de Minas, prefere dar as costas aos mistérios que lhe foram
gratuitamente revelados, numa explícita recusa ao metafísico:
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, (…)
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, (…)
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Tanto no poema de João Filho quanto no de Drummond, verifica-se o
predomínio do decassílabo heroico (o segundo utiliza-se eventualmente do
sáfico); outro elemento que os aproxima é a disposição dos versos em tercetos,
embora o poeta mineiro prefira o verso branco, enquanto o baiano, lançando mão
da terza rima,
aproxima-se da estrutura d’A
divina comédia, obra com a qual guarda semelhanças pelo teor
metafísico e pela natureza alegórica. Se o eu lírico de “A máquina do mundo”
dispensa a revelação, o barqueiro José (nome cheio de ressonâncias
drummondianas) mergulha de cabeça no mistério.
A divergência entre os dois poemas resgata a polêmica de um artigo
escrito por Bruno Tolentino para a revista Bravo! no ano de 2000. No artigo
“Janelas sobre o caos”, Tolentino queixa-se do ambiente cultural acabrunhante
do Brasil de sua época, atribuindo a culpa desse estado de coisas a Carlos Drummond
de Andrade, que, na condição de nosso poeta maior, teria causado um
estreitamento de nosso horizonte poético ao desprezar a temática metafísica:
“Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma
dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do
‘mundinho poetizado’, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao
cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da
existência”[2]. Que o autor de Auto da romaria tenha
escrito o que aparenta ser uma resposta à grande profissão de fé antimetafísica
da obra de Drummond demonstra, descontadas a leitura enviesada e a injusta
avaliação sobre a poética drummondiana, a grande importância de Tolentino para
certa vertente da poesia brasileira contemporânea, na qual se inclui João Filho
como um dos nomes mais proeminentes.
Podemos
definir o regionalismo alegórico de João Filho da seguinte maneira: em Auto
da romaria, os elementos do universo regional podem ser decodificados como
índices de uma cosmovisão cristã, figurando como vestígios de uma ordem
superior (na segunda seção de “São Francisco”: “Em Bom Jesus da Lapa, a luz
fomenta/ os fios fundadores do mistério”). Grosso modo, a alegoria é um recurso
retórico por meio do qual, pela representação de seres concretos, exprime-se um
conteúdo abstrato, como ideias, preceitos, sentimentos, virtudes etc. Walter Benjamin, ao tratar do uso
da alegoria na literatura barroca, observa como tal recurso expressa uma
consciência da precariedade da existência terrena diante de uma ordem superior.
O alegorista buscaria exprimir, de maneira incompleta e aproximativa, uma
verdade que escapa à razão e à linguagem humanas, pois situada fora do plano
terreno, destituído de significado intrínseco. Por isso a imagem alegórica é
sempre um fragmento, a ruína de uma totalidade semântica inexprimível. Vem daí,
também, a natureza arbitrária das alegorias, que buscam capturar o inefável
numa imagem sensível[3].
A visão alegórica do homem barroco, embora carregada de elementos
medievais, está na raiz de uma compreensão moderna do mundo. O barroco, em muitos
sentidos, manifesta uma consciência angustiada do colapso da ordem tradicional
com o advento da modernidade, correspondendo à antítese do otimismo
racionalista do Renascimento. Sob a ordem tradicional, o mundo parecia uma
unidade inteligível, plena de significado e passível de ser compreendida em
seus fundamentos básicos. De repente, não apenas o saber tradicional
mostrava-se inútil diante da nova realidade social que emergia, como também
caía por terra a possibilidade de unificar as pessoas sob um único sistema de
pensamento, ancorado institucionalmente na Igreja Católica. O real, em seus
diversos aspectos, transformava-se numa rede inextricável de fenômenos e
relações, diante da qual o indivíduo não conseguia obter mais do que uma visão
confusa e fragmentária. A alegoria barroca exprime esse estado mental e, ao
mesmo tempo, a nostalgia por uma perspectiva mais sólida e totalizante, por uma
ordem capaz de redimir o aparente caos da existência.
Essa visão dilacerada da realidade só se faria agravar com a
erupção do capitalismo industrial e seus desdobramentos. Octavio Paz, em
“Analogia e ironia” (d’Os
filhos do barro), mostra como o romantismo, no início do século
XVIII, funda uma visão do mundo baseada na analogia, que, criando relações de
identidade entre seres díspares, estabelece uma teia de correspondências na
qual a aparente incongruência do universo seria redimida[4].
Contudo, a analogia nunca supera de fato a alteridade; ela apenas a transfigura
numa imagem conciliada. Mais do que isso, a visão analógica e seu desejo de
projetar uma versão pacificada do mundo trai a consciência da irredutível
heterogeneidade das coisas: “A poética da analogia só podia nascer numa
sociedade fundada — e roída — pela crítica. Ao mundo moderno e linear e suas
infinitas divisões, ao tempo da mudança e da história, a analogia contrapõe não
a impossível unidade, mas a mediação de uma metáfora. A analogia é o recurso da
poesia para fazer frente à alteridade”[5].
No expediente alegórico da poesia de João Filho, observa-se a
cosmovisão analógica descrita por Paz. Em Auto da romaria, subsiste o desejo de
dissolver as contradições do mundo no absoluto, chegando-se ao momento em que
agora, tudo é silêncio,
conexão dos contrários,
parte dos céus se derrama,
da terra sobe uma parte,
pela coluna que ata
nesse momento os cenários. (grifo meu)
conexão dos contrários,
parte dos céus se derrama,
da terra sobe uma parte,
pela coluna que ata
nesse momento os cenários. (grifo meu)
Ao final do percurso da romaria, no poema “6 de agosto”, os céus
baixam à terra e a terra se eleva às alturas, unificando todos os espaços.
Aqui, a região perde seus traços distintivos, integrando-se a uma unidade
transcendental, e toda forma de alteridade é superada por uma síntese maior.
Contudo, a alegoria, como expediente analógico, não deixa de ser
um meio pelo qual se manifesta a consciência da impossibilidade de, no plano
terreno, operar-se a síntese almejada pela perspectiva autoral. Segundo Walter
Benjamin, a alegoria procura, por meio de um acúmulo vertiginoso de
significantes, cacos de imanência, transmitir um significado que está além dos
recursos expressivos e intelectuais humanos. Se a alegoria existe, é porque o
transcendente não se faz sensível (porque daí teríamos o símbolo). Além disso,
o discurso alegórico, buscando reconstituir uma unidade perdida, expressa em
suas tramas o caráter compósito e fragmentário do real.
O poema no qual as contradições do procedimento alegórico são mais
visíveis é a nona seção de “Em torno da venda” — “A venda por dentro”. Nessa
série de poemas, a alegoria não se volta ao espiritual, mas ao passado, numa
tentativa de se resgatar, por meio do trabalho da memória, a integridade
semântica daquilo que chamamos “vida”. O eu lírico procura encontrar, na
criança que ele foi e no adulto que ele se tornou, no passado rememorado e no
presente vivido, um princípio de unidade que constitua sua identidade. Para
tanto, é preciso recolher estilhaços de lembranças que, assim como as
mercadorias na venda de uma cidadezinha do interior, não formam um conjunto
coerente:
Serengas, peixeiras,
vianas e naifas,
facões, lambedeiras
— as lâminas várias;
vianas e naifas,
facões, lambedeiras
— as lâminas várias;
pregos, parafusos,
quinas, estreitezas
— o roxo mais puro,
a dor mais espessa;
quinas, estreitezas
— o roxo mais puro,
a dor mais espessa;
Perceba-se como, na segunda estrofe, uma nota subjetiva (“a dor
mais espessa”) começa a infiltrar-se na enumeração dos produtos postos à venda,
deslocando o discurso do âmbito da pura objetividade para o da memória afetiva.
No meio desse “caos que açula”, tropeçamos na figura de João Galego, o pai do
eu lírico; em seguida, a enumeração continua:
espátulas, tornos,
formões, discos, cintas,
cincerros, gangolôs
— falta coisa ainda:
formões, discos, cintas,
cincerros, gangolôs
— falta coisa ainda:
(…)
coloratos, bombas,
nitroglicerina,
dinamite assombra
— falta coisa ainda:
nitroglicerina,
dinamite assombra
— falta coisa ainda:
O “falta coisa ainda”, quase um estribilho, expressa as limitações
da memória e da linguagem em sua tentativa de reconstituir o real em sua
integridade de significado. Na verdade, o que não se reconstitui é o passado como
experiência do sujeito lírico, uma experiência agora dispersa e, em alguma
medida, inacessível. O fato de o poema terminar justamente com o “falta coisa
ainda” concede palavra final à insuficiência do discurso diante daquilo que se
pretende exprimir:
balança, ouro a fio,
o metro que finda,
serrotes, barril
— falta coisa ainda.
o metro que finda,
serrotes, barril
— falta coisa ainda.
“A venda por dentro” mostra que a venda, como totalidade, é mais
do que a soma das mercadorias vendidas, ou seja: a mera enumeração dos
múltiplos elementos que compõem aquele espaço não é suficiente para dar uma
ideia do que ele significa para o eu lírico. Desse modo, podemos considerar a
venda como uma alegoria de um mundo incongruente e multíplice, que não se
apresenta como síntese, ainda que a linguagem procure, em vão, oferecer dele
uma imagem conciliada. Já as mercadorias, além de representar os fragmentos de
imanência que compõem o mundo empírico, são alegorias da própria ideia de
alegoria — meta-alegorias,
portanto —, na medida em que, por um processo cumulativo, tentam reconstruir
uma totalidade impossível de ser reconstruída.
Assim, se por um lado, em Auto
da romaria, encontramos a fé numa ordem superior capaz de dotar a
realidade de significado, por outro, esbarramos às vezes na consciência da
precariedade dessa tentativa de dar significação às coisas. As imagens que
expressam tal precariedade são várias: “crença precária” (“A Gruta e o Morro”),
“na terra e alma/ velha secura” (“Lamentação das almas”), “sonho pobre”
(“Promessa de cera”), “estilhaços da fé” (“Romeiros”) etc. É como se o poeta se
voltasse à aridez da terra e à pobreza da população como uma tentativa de se
aproximar do essencial, dispensando o que há de excessivo e redundante na
imanência (em “A venda por dentro”, sugestivamente representado por
mercadorias). No entanto, junto ao essencial, ele encontra a carência, o
insuficiente, a precariedade, o sofrimento, que nem sempre admitem a
transfiguração metafísica. Num poema como “Romeiros”, em que a romaria dos
vivos se encontra com a dos mortos, a tônica está dada não na dor como caminho
da salvação, mas na dor como condição inegociável do humano, irredutível, o que
encontra na miséria dos habitantes da região uma de suas faces mais cruéis.
João Filho supera as limitações do regionalismo literário por meio
de uma visada alegórica sobre o universo regional. Porém, a retomada da
alegoria repõe os conflitos do homem moderno com uma realidade que se apresenta
como manancial de contradições. Aparentemente, há uma dupla fuga da
modernidade: da cidade cosmopolita para o espaço regional e da poesia de origem
vanguardista (os diversos modernismos) para as formas tradicionais. Entretanto,
estamos diante de uma poesia essencialmente moderna, assim como a cosmovisão
que a funda, uma vez que não se trata mais de expressar uma ordem que,
supõe-se, já esteja evidente, cabendo à linguagem apenas manifestá-la; em Auto da romaria, cabe
ao poeta reconstituir precariamente tal ordem dos escombros da tradição, sobre
os quais se erigiu a modernidade.
Dante, embora num diferente grau de entendimento, compartilhava
com seus leitores contemporâneos uma cosmovisão sólida, com base na qual era
possível construir suas alegorias. No caso do escritor moderno, especificamente
de João Filho, é preciso criar uma imagem ordenada do mundo a partir de uma
transfiguração poética da realidade empírica. O fato de sua poesia demonstrar
as contradições e dificuldades desse empreendimento só a torna ainda mais
complexa e intrigante, expandindo as possibilidades de leitura da obra para
além da temática metafísica. Portanto, Auto
da romaria não se limita ao universo regional que lhe serve de
matéria, nem à visão religiosa do autor. Como toda obra de arte digna do nome,
o livro formaliza esteticamente a experiência humana, expressando dilemas
existenciais interessantes por si mesmos, independentemente das soluções
propostas pelo artista.
______
NOTAS
NOTAS
[1] CANDIDO, Antonio. “Literatura e
subdesenvolvimento”. In: A
educação pela noite. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011,
pp. 190-6.
[2] TOLENTINO, Bruno. “Janelas sobre o caos”. Bravo!, nº 29, fevereiro/2000, pp. 21-2.
[3] BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 189-201.
[4] PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 69-74.
[5] Idem, ibidem, p. 80.
[2] TOLENTINO, Bruno. “Janelas sobre o caos”. Bravo!, nº 29, fevereiro/2000, pp. 21-2.
[3] BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 189-201.
[4] PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 69-74.
[5] Idem, ibidem, p. 80.
Doutor em Literatura Brasileira pela
USP. Autor de Pavão bizarro (poesia)
e A narração dificultosa (crítica).