segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O CANTO


O canto, mesmo que seja para que a noite desça sobre a alma.
O canto, mesmo para que cesse a vida. O canto, mesmo sem esperança.
Mesmo que as estrelas caiam sobre antigas torres onde ficaram sombras de
                                                                                                mortos soluçando.
E as crianças sejam impuras. E as mães não recuperem a infância.
Mesmo que o coração não possa reter uma só nota da ária angélica
nem conduzir consigo, para a sombra, a palpitação de coros inefáveis.
O canto, mesmo que seja para que a voz permaneça amarga e inapreendida,
mesmo que seja para que os sonhos se asfixiem lentamente
e reine, para sempre, a solidão feroz
dos píncaros desertos,
dos rochedos,
da treva.

Alphonsus de Guimaraens Filho. Só a noite é que amanhece. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.220.