BOLERO DE ANIVERSÁRIO
Quando
iniciou toda esta história,
já
não consigo me lembrar;
mas
dá na mesma: “Quando se ama
ah...
sempre temos vinte anos.”
Éramos
jovens, muito loucos,
pois
nossos gestos denunciavam.
Desobedientes
aos preceitos
da
prudência, bem..., nos casamos.
(Para
que tudo harmonizasse
aquele
marco incomparável
numa
remota igrejinha e um
mês
de julho dos mais paulistas.
Foi
de verdade inesquecível:
ao
padre e aos convidados
ainda
hoje dói na memória
o
feroz frio que passamos.)
Nossas
reservas de futuro
também
estavam bem abaixo
de
zero, mas em sonhos éramos
mais
milionários que Bill Gates.
Éramos
tão ecologistas
e
naturistas que já estávamos
chamando-nos
papai, mamãe
antes
de haver passado um ano.
Ela
era linda, eu bem bestinha,
e
dois péssimos matemáticos,
assim
que um dia, de repente,
um
mais um, já éramos quatro.
E
logo cinco e seis e nove,
e
cada vez maior escândalo.
(E
se é verdade, os sentimentos
são
os mais revolucionários.)
O
povo que é mui generoso
com
seus conselhos, sempre dando-nos
ânimo:
— “Filho neste mundo!,
apartamentos
são tão caros,
como
vão pagar os estudos,
e
o problema demográfico”,
no
final de todas as contas
nós
dois estávamos ferrados.
Tinha
o povo suas razões:
pois
claro está que era insensato
tudo
isso, e a bem da verdade
poucas
e boas nós passamos;
e
houve grunhidos, maldições,
lágrimas,
gritos e insultos.
(A
vida é o mais parecido
a
um dramalhão mexicano).
Mas,
apesar de tantas coisas,
atravessamos
esses anos,
aqui
está hoje aquele amor;
cheio,
é certo, de esparadrapo,
mas
o mesmo daqueles sonhos
radiantes
(algo distraídos);
o
mesmo..., contudo, hoje o tempo
multiplica
por vinte e quatro.
25-I-97
Miguel
d’Ors, Hacia otra luz más pura,
Editorial Renacimiento, 2003, pp.63-65