segunda-feira, 7 de julho de 2014

SONHO RECORRENTE OU SEIS PASSOS PARA UM POEMA SURREALISTA


Assim se sucedeu naquele sonho:
era noite quando uma jovem moça
perguntava-me as horas. Eu lhe disse:
"Não sei não, senhorita, mas é tarde;
não há ninguém na rua, não há nada".
Ela, então, deu um tiro na cabeça.

Era noite de novo; na cabeça
a sensação de estar vivendo um sonho
como se caminhasse sobre o nada.
Chegou-se a mim aquela jovem moça:
"Morri, ressuscitei; é muito tarde.
Mate-me agora mesmo!", ela disse.

Era de noite quando alguém me disse:
"Veja só, estourei minha cabeça
e não posso emendá-la, pois é tarde!",
e tudo se passava como num sonho.
Diante de mim, aquela jovem moça
estava morta; não dizia nada.

De noite outra vez, não se via nada.
Do escuro, soou uma voz que disse:
"Não se esqueça daquela jovem moça
que levou um balaço na cabeça!".
Lembrei-me vagamente de algum sonho,
mas não pude retê-lo. Era tarde.

De noite. Muito escuro. Muito tarde.
Já não me lembro mais de quase nada
e vejo as coisas turvas, feito um sonho.
Só sei que certa vez alguém me disse:
"Cuidado! Não atire na cabeça!".
No chão, jaz o cadáver de uma moça.

Percebo-me: sou uma jovem moça
andando por aí -- tarde, bem tarde.
Estou morta e não tenho mais cabeça;
nas mãos, trago um revólver e mais nada.
"Não há ninguém na rua", alguém me disse.
Não sei se sou real nem sei se sonho.

É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,
algo que alguém me disse muito tarde,
um tiro e só. Mais nada na cabeça.

Emmanuel Santiago. Pavão bizarro. São Paulo: Patuá, 2014, p.67-68