sábado, 12 de julho de 2014

BOLERO DE ANIVERSÁRIO


Quando iniciou toda esta história,
já não consigo me lembrar;
mas dá na mesma: “Quando se ama
ah... sempre temos vinte anos.”

Éramos jovens, muito loucos,
pois nossos gestos denunciavam.
Desobedientes aos preceitos
da prudência, bem..., nos casamos.

(Para que tudo harmonizasse
aquele marco incomparável
numa remota igrejinha e um
mês de julho dos mais paulistas.

Foi de verdade inesquecível:
ao padre e aos convidados
ainda hoje dói na memória
o feroz frio que passamos.)

Nossas reservas de futuro
também estavam bem abaixo
de zero, mas em sonhos éramos
mais milionários que Bill Gates.

Éramos tão ecologistas
e naturistas que já estávamos
chamando-nos papai, mamãe
antes de haver passado um ano.

Ela era linda, eu bem bestinha,
e dois péssimos matemáticos,
assim que um dia, de repente,
um mais um, já éramos quatro.

E logo cinco e seis e nove,
e cada vez maior escândalo.
(E se é verdade, os sentimentos
são os mais revolucionários.)

O povo que é mui generoso
com seus conselhos, sempre dando-nos
ânimo: — “Filho neste mundo!,
apartamentos são tão caros,

como vão pagar os estudos,
e o problema demográfico”,
no final de todas as contas
nós dois estávamos ferrados.

Tinha o povo suas razões:
pois claro está que era insensato
tudo isso, e a bem da verdade
poucas e boas nós passamos;

e houve grunhidos, maldições,
lágrimas, gritos e insultos.
(A vida é o mais parecido
a um dramalhão mexicano).

Mas, apesar de tantas coisas,
atravessamos esses anos,
aqui está hoje aquele amor;
cheio, é certo, de esparadrapo,

mas o mesmo daqueles sonhos
radiantes (algo distraídos);
o mesmo..., contudo, hoje o tempo
multiplica por vinte e quatro.

25-I-97
Miguel d’Ors, Hacia otra luz más pura, Editorial Renacimiento, 2003, pp.63-65