quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

IN MEMORIAM
Locvizza, 30 de setembro de 1916

Chamava-se
Moammed Sceab

Descendente
de emires de nômades
suicida
porque não tinha mais
Pátria

Amou a França
e mudou de nome

Foi Marcel
mas não era francês
e já não sabia
viver
na tenda dos seus
onde se escuta a cantilena
do Alcorão
saboreando um café

E não sabia
desatar
o canto
do seu abandono

Acompanhei-o
junto com a dona da pensão
onde vivíamos
em Paris
do número 5 da rue des Carmes
esquálido beco em declive

Descansa
no cemitério de Ivry
subúrbio que parece
sempre
em dia
de
decomposta feira

E talvez apenas eu
saiba ainda
que viveu

Giuseppe Ungaretti. A alegria. Trad. Geraldo Holanda Cavalcanti. Record: Rio de Janeiro, 2003, p.41

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

APRENDIZADO


Gritava a alma como grita o porco:
a grande noite não a socorria
e o último eco nascia morto.

Bebia a água e bebia o porto:
navios que atracavam na garganta
e algas recompondo hortos.

Havia a vida e havia o dorso
deitado no silêncio desse dia
e havia ainda o olhar absorto.

Ah!... Havia o corpo...
Havia o corpo, que aprendia
a manejar a vontade e enfim sorria.

Wladimir Saldanha. Culpe o vento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.70



quinta-feira, 20 de novembro de 2014



Cerne claro, cousa
aberta;
na paz da tarde ateia, bran-
co,
o seu incêndio.

Ferreira Gullar. A luta corporal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p.53

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

[Depois de cantar um canto irresistível]

  
Depois de cantar um canto irresistível
aos nautas que há muito não trafegavam
por aqueles mares distantes;
depois de o canto ecoar nos rochedos
de sua ilhota e nos ouvidos das gaivotas
que, impassíveis, se estendiam ao sol,
o último daqueles animais sem destino
atravessou o Mediterrâneo, o Atlântico
e a Baía de Todos os Santos, para emergir
seu corpo perfeito no Porto da Barra,
sob os olhares luminosos dos turistas,
à procura de Odisseu.

Elói Alexandre Dias Martins. 


terça-feira, 4 de novembro de 2014

18. A força que há na luz, não sua ausência,
     pode ser a origem mais secreta
     do escuro em que afundamos de repente:
     por excesso de luz, eis que estou cega,
     por excesso de amor, eu não entendo
     - o farfalhar macio, a crua seda -
     aquilo que nos move, e que ultrapassa
     o limite de tudo o que sabemos.
     Por excesso de dor eu me humanizo,
     eu me faço pequena e tão real,
     nos tornamos serenos, silenciosos,
     tão reais e inocentes e macios,
     que essa luz que não vemos é demais.
     Mesmo ser é um excesso em que caímos.

Marly de Oliveira. Obra poética reunida. São Paulo: Massao Ohno editor, 1989, p.105

domingo, 19 de outubro de 2014

INFLUÊNCIA DAS VOZES 


Nunca fiz um poema limpo
como o avental de minha mãe:
sempre os outros e o pó dos Outros
puseram em mim sua presença.

Como na infância, há sempre um vulto
emergido de algum silêncio.
Para ajudar-me a escrever,
vem segurar na minha mão.

Mas rasgo tudo, rasgo o que amo
e vejo tudo realizado
nas outras mãos, enquanto fico
desconfiado de minha força.

Às vezes mostro a meus amigos
estas flores, peço-lhes água.
eles sorriem, são meus amigos,
mas também estão no deserto.

Já não preciso ser autêntico:
sobre uma só realidade
eis-me na terra como os outros,
sou os outros, e morro só.

Alberto da Cunha Melo. O cão de olhos amarelos e outros poemas inéditos. São Paulo: A Girafa, 2006, p.254


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

“Antes de qualquer coisa, há que distinguir entre a arte que nos incita e excita, e a arte que nos eleva e silencia. E, depois, saber que uma existe para fugir da outra.”

José Mateos  http://josemateos.es/


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A ETERNA PELEJA: CENAS


Quando Dante entrou na noite
e burilou meus dilemas
havia deuses em cena
treinando a arte do coice.

Andei pelos arredores
e vi nos muros cravadas
as vidas dos camaradas
com seus retratos e horrores.

E vi meus próprios horrores
em mil perfis e fracassos
ornados com farpas, trapos
lembrando Picasso, em cores

que a Existência traduz.
E um deus, como se um cão não fosse,
partiu ao meio com um coice
meu ser em forma de cruz.

A noite ficou mais noite
e então regressei a Dante
e disse-lhe: ó bardo, cante!
E o florentino cantou.

Cantou e seu alto canto
naquele inferno ecoou.
Meu ser partido, no entanto,
partido estava e ficou.

E assim, em tom solene,
pedi-lhe que me escutasse.
Olhou-me, com ar de pena,
mas permitiu que eu cantasse.

Cantei, cantei, cantei tanto
que a noite se dissipou.
E o deus, para meu espanto,
entrou em cena e falou:

"Aqui, tudo me pertence:
a noite, o dia, o abismo.
E quando escoiceio e cismo,
ninguém ou nada me vence.

E aviso: acabou-se o prazo
para que se vão embora.
Não reino aqui por acaso:
da Terra posto pra fora

embaixo de tapa e coice
fundei aqui meu reinado.
E sempre que a morte trouxe
a mim um homem versado

mandei-lhe embora sem mais.
Se move com as próprias pernas,
propala coisas modernas
e me atrapalha demais.

Por isso é que ordeno: fora!
Somente os comuns convêm.
São seres que a qualquer hora
se portam como Ninguém."

Falou o deus, regressamos.
E eu perguntei a Dante:
E agora, pra onde vamos?
E o bardo, naquele instante,

após hesitar, me diz:
"Melhor não voltar à Terra.
Prefiro errar infeliz
neste cenário pós-guerra

que o Limbo nos oferece."
E então seguimos, chorando,
sem rumo, balbuciando
os restos de alguma prece.

Roberval Pereyr. 110 Poemas. Salvador: Quarteto, 2013, pp.150-152

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ESCRITOR BAIANO LANÇA DICIONÁRIO AMOROSO DE SALVADOR 

NA LIVRARIA CULTURA


João Filho retrata a cidade em verbetes e com humor crítico; lançamento acontece neste sábado (27), às 18h


Por Laura Fernandes

Natural de Bom Jesus da Lapa, o escritor João Filho, 39 anos, retrata a cidade onde mora desde 2005 (Foto: Betto Jr.)


Como apresentar Salvador para turistas e baianos? A: andar pelos pontos turísticos da cidade. B: buscar lugares não tão óbvios assim. C: contar histórias sobre seu povo e casos que têm a capital baiana como cenário. De A a Z, são inúmeras as possibilidades e o escritor baiano João Filho, 39 anos, encontrou uma curiosa e criativa: o Dicionário Amoroso de Salvador (Casarão do Verbo/R$ 34/255 páginas).

Verbete a verbete, o autor costura crônicas sobre pontos turísticos, bairros, monumentos históricos, artistas e sobre a inconfundível personalidade do baiano. A obra, que tem lançamento amanhã (27), às 18h, na Livraria Cultura do Salvador Shopping, integra a Coleção Dicionário Amoroso das Capitais Brasileiras. Salvador é a quarta cidade a ser retratada, depois de Recife, Curitiba e Porto Alegre.

Apesar do livro levar o "amor" no título, engana-se quem pensa que João retrata a cidade de forma ingênua. Elogios e verdadeiras declarações de amor andam lado a lado com ironia, humor e crítica. "É 'amoroso' porque abarca tanto defeitos quanto qualidades. Quem ama consegue ver tudo isso", acredita o autor, declaradamente influenciado por Nelson Rodrigues (1912-1980).

 Para ter uma ideia do retrato feito por João Filho - a convite do editor da Casarão do Verbo, Rosel Soares - é só passar o olho pelos 58 verbetes, alguns ilustrados por Caius Marcellus. Entre os listados no livro, que lembra um guia turístico, estão Armandinho, Abaeté, Ba-Vi, Candomblé, Caymmi, Elevador Lacerda, Estação da Lapa, Fitinhas do Bonfim, Igrejas, Jorge Amado, Os Falares, Preguiça e Vendedor de Cafezinho.

Alguns merecem ser citados e um deles é Brotas. "Brotas não é um bairro. Dizem as boas línguas que é um país que faz divisa com Salvador. Desse modo, você tem que estudar o idioma, trocar o câmbio e tirar o passaporte. (...) Apesar dos geógrafos insistirem, não tem limites, ninguém sabe onde começa ou termina. (...) Toda ladeira vai dar em Brotas", diz um trecho.

Outro interessante é Os Falares, que ressalta a linguagem do baiano a partir de uma cantada: "-Ah, morena, ainda caso com você. - Aooonde! O 'aonde' utilizado como interjeição negativa é um achado linguístico. Se a linguagem é um reflexo da realidade, em Salvador, ela é uma farra e será sempre uma licença poética. Desse jeito, prepare-se ao tentar obter informações geográficas por aqui. (...) Se você perguntar: onde é que fica tal loja? Vão te responder: lá na antiga coca-cola".

Já Campo Grande e Praça Castro Alves ilustram um misto entre denúncia e amor por Salvador. Um trecho do primeiro pode ser lido na página ao lado, enquanto o segundo diz: "A Praça não é de ninguém. O poeta - de mão estendida, pede às musas inspiração, ou, como os mendigos, pede moedas? - está de costas para o mar. Sob a estátua estão seus ossos. Sua glória é também seu túmulo. (...) A praça é dos pombos. (...)".

Antes de prosseguir com a matéria, vamos dar só mais um pulo pela Estação da Lapa. "Eis aqui a muvuca em estado bruto. É a aorta cardíaca da cidade. As multidões escoando pelos túneis, descendo e subindo as escadarias, desaguando lá embaixo na Estação da Lapa", começa o verbete, que ressalta que "a convulsão ordenada das gentes e a zoada de suas vozes é o combustível no motor do dia (...)".

LOUQUÍSSIMA João Filho escreveu seu Dicionário Amoroso sentado todos os dias, das 8h às 23h, entre outubro do ano passado e janeiro deste ano. Depois de rever Salvador, ler e reler livros sobre ela, o escritor, natural de Bom Jesus da Lapa, fez uma "lista louquíssima" com tudo o que gostaria de retratar da cidade onde mora desde 2005. "Tentei jogar o máximo que pudesse dentro do livro. Até que percebi que era impossível. Não dá pra captar uma cidade toda no livro, então fui por eliminação e fui pegando as coisas e figuras representativas", explica o autor.

Ele não nega sua subjetividade na seleção, mas conta que tentou "ficar escondido" e deixar a cidade em destaque. Esse é o segundo livro de João publicado este ano. Além do Dicionário, ele lançou o livro de poemas A dimensão necessária (Mondrongo). O autor, que começou a escrever com 13 anos, ganhou destaque a partir da estreia com Encarniçado (Baleia), de 2004. "Foi o livro que me deu 15 minutos de fama", diz, rindo, ao lembrar o lançamento feito na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005.

João confessa que se divertiu muito com o Dicionário Amoroso de Salvador. "Dei muita risada. Minha relação com Salvador é de amor e ódio.Tentei jogar tudo isso, de forma bem irônica, sempre com algum teor filosófico e uma brincadeira. Tem denúncia, aparece um pouco meu rancor, mas também todo o meu amor pela cidade". Sobre o que ficou de fora, João lembra de uma conversa com o amigo que enumerou que ele "não colocou isso, isso e isso".

"Assim cada um vai ter que fazer seu próprio dicionário amoroso", concluiu o rapaz, após a lista de coisas que não foram contempladas. João achou a ideia ótima. Letra A: vamos começar?

*VERBETE CAMPO GRANDE

"(...) Aqui é território de todos e de ninguém: velhos e pipocas, crianças e cigarros, pedintes e colegiais, putas e funcionários públicos, picolés e moradores de rua; acolá vai um sacizeiro no rumo do seu vício; não faz muito tempo, perto do laguinho, um estudante foi deixado sem vida. No centro e dominando a Praça, O Monumento aos Heróis da Independência, vulgo, monumento  ao caboclo, erguido em 2 de julho de 1895, é obra do escultor Carlo Nicoli. Cabem no Largo todas as nuances psíquicas do humano, do civismo ao canalhismo, passando pela candura à selvageria, e a inocência dos meninos e meninas que burlam o tempo no parquinho. A luz se multiplica nas grandes copas centenárias. Todo o Largo em sua exuberância espacial, que tanto você quanto eu podemos apenas intuir num relance imaginativo, é de uma transparência que revigora e tranquiliza. (...) Os garis combatem, mas a incivilidade avança. Trabalho não cessa. Não há como varrer as manchas da memória que marcam uma praça. As incontáveis vezes que o drama, a tragicomédia anônima se desenrolaram no seu piso, o desespero e a alegria que as nuvens registraram (...)"


*Trechos do livro
(Foto: Evandro Veiga/Arquivo Correio)

Estação Ressalta que em Salvador "ou chove ou faz sol". "As chuvas de verão pegam de surpresa muitos desavisados. Ensopam o sujeito em plena praça ou avenida e o abandonam por lá. Mal passou a chuva, sobe o mormaço. Aí, meu amigo, o também desavisado parece que vai sufocar, o ar fica grudento (...)"

(Foto: Evandro Veiga/Arquivo Correio)

Fitinhas do Bonfim "Esqueça as desavenças históricas, (...) as falsas teologias de ateus - e amarre a fita no pulso, a cada nó faça um pedido (...) e se fie no Alto, ele cumprirá seus votos. No entanto, ali pelo centro histórico, para sua segurança, não aceite em hipótese alguma as figuras que abordarem você oferecendo fitinhas do Bonfim (...)"

(Otto Stupakoff/Divulgação)

Jorge Amado "Antes e com zelo, melhor que se aclare, além de ser um dos três criadores da baianidade nagô (os outros dois são Carybé e Caymmi), a literatura de Jorge Amado (1912-2001) tem como fundamento o fuxico. Através deste, escreveu pequenas obras-primas. Dito isso, continuemos (...)".

Tirei daqui: http://www.ibahia.com/detalhe/noticia/escritor-baiano-lanca-dicionario-amoroso-de-salvador-na-saraiva/?cHash=82186b72d44a9b8a0cfa6a3e7699cfc5
Uma crônica de Pina L. C. Bragança. 

FUI À BIBLIOTECA


Fui à biblioteca pública da minha cidade* após ouvir um garoto típico dos nossos dias cheio de opinião, que mal sabe ler e se espanta quando perguntado quem é o autor de um determinado livro e acha que protagonista é algum alienígena. Fazia calor. Cheguei sacudindo a camisa polo e os meus olhos sorriram para uma grande árvore de folhas pequeninas embelezando a biblioteca. Paro por algum tempo e me vejo por entre as copas bordando o chão de sombras. Pensei: “Que árvore é?”.

Do interior da biblioteca, entre estantes paralelas de prateleiras com livros e mais livros de poesias, crônicas, contos, novelas, romances, dentre outros, o visitante pode escolher o gênero do seu interesse, sentar e ler, enquanto ouve o canto de algum passarinho, o sussurro das conversas, o arrastar respeitoso de cadeiras e, ao longe, os ruídos dos automóveis. Escolho uma mesa próxima da janela, justamente para os meus olhos alcançarem a árvore da raiz às folhas verde-escuras e o céu azul carente do rastro das asas da adolescência.

Mesmo nesse pequeno mundo arejado pela literatura, o jovem “sem noção”, no elevado da sua arrogância, “mandou”:

“Naquela merda não tem nada o que a gente quer!”. Questionei: “Mas nada como?”. Com a cabeça encoberta por um boné com a aba virada para trás, respondeu: “Livro de estória, ué!”. “Mas é o que mais tem numa biblioteca”. “Nada da minha curtição, tá ligado, véio?”. Olhei-o por alguns segundos no intuito de questioná-lo. Desisti. Com o tempo ocioso descobri na biblioteca o suficiente para que um moço de 17 anos (idade aproximada do dito cujo) pudesse ter uma boa educação do imaginário.

Por quase duas horas passei em revista as prateleiras carregadas de livros com nomes famosos gravados neles. Aproveitei para folhear algumas dessas obras e tomar a liberdade de trocar bate-papos com quatro poetas: Rainer Maria Rilke, Cruz e Sousa, Jorge de Lima e Murilo Mendes. Quanta honra. Estavam presentes os mestres Graciliano Ramos, Machado de Assis e próximo deles Marques Rebelo acompanhado por José Lins do Rego. Rubem Braga chegou minutos depois com as suas crônicas e algumas delas ainda pulsam o meu coração de lirismo. Passei um bom tempo ouvindo J. R. R. Tolkien falar dos seus mundos, dos seus personagens e do valor da amizade.

Então, olhando para a folhagem da árvore (disseram-me “ela está condenada, mas vão plantar outra”), pensei: “Meu Deus, todos esses escritores seriam grandes amigos desse moço em jornadas pelo saber, caso ele fosse gentil à leitura no espaçar dos anos”. Assim ele conheceria outras vidas (experiências vividas), personagens pelas quais faria descobertas dele mesmo, quando tiraria o boné para arejar a cabeça e bem sei: aproveitaria o gesto para reverenciar os mestres e extirparia a vergonha de um dia ter dito “Naquela merda não tem nada o que a gente quer!”.


*Santo Antônio da Platina (Norte Pioneiro do Paraná).

sábado, 20 de setembro de 2014

SERENATA


Que transparência no meio
dos teus cabelos doía
quando as brisas os alavam
as brisas que então corriam
quando as noites se apressavam

ainda há na brisa um descampado ondeando
que o vento não tardou a arborizar
mas por chegares já opto por um bando
de modos de ave para te deixar.

Sebastião Alba. O ritmo do presságio. INLD: Maputo, 1981, p.40

domingo, 14 de setembro de 2014

Tudo em volta induz à loucura, ao infantilismo, à exasperação imaginativa. Contra isso o estudo não basta. Tomem consciência da infecção moral e lutem, lutem, lutem pelo seu equilíbrio, pela sua maturidade, pela sua lucidez. Tenham a normalidade, a sanidade, a centralidade da psique como um ideal. Prometam a vocês mesmos ser personalidades fortes, bem estruturadas, serenas no meio da tempestade, prontas para vencer todos os obstáculos da vida com a ajuda de Deus e de mais ninguém. Prometam SER e não apenas pedir, obter, sentir, desfrutar.

Olavo de Carvalho

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O CANTO


O canto, mesmo que seja para que a noite desça sobre a alma.
O canto, mesmo para que cesse a vida. O canto, mesmo sem esperança.
Mesmo que as estrelas caiam sobre antigas torres onde ficaram sombras de
                                                                                                mortos soluçando.
E as crianças sejam impuras. E as mães não recuperem a infância.
Mesmo que o coração não possa reter uma só nota da ária angélica
nem conduzir consigo, para a sombra, a palpitação de coros inefáveis.
O canto, mesmo que seja para que a voz permaneça amarga e inapreendida,
mesmo que seja para que os sonhos se asfixiem lentamente
e reine, para sempre, a solidão feroz
dos píncaros desertos,
dos rochedos,
da treva.

Alphonsus de Guimaraens Filho. Só a noite é que amanhece. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.220.


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Amanhã, 06 de setembro, lançamento do Dicionário amoroso de Salvador, em Lençóis. 
Na I FLICH. 



domingo, 24 de agosto de 2014

XIV


     Amo tudo aquilo que é puro, justo e verdadeiro. Amo a troca de anéis ou de alianças entre as criaturas — a linguagem do pacto e não da ruptura — para manter o que é puro, justo e verdadeiro no homem. Amo o encontro e o desencontro, desde que sejam reais. Amo tudo aquilo que é contrato — bárbara palavra — para cumprir todos os seus termos, seja qual for o contrato. Amo a Vida, o valor maior, sósia de Deus.
     Por isso eu me penitencio, se deixei que alguma vez o orgulho fosse maior do que o meu amor. Eu me penitencio, se não amei suficientemente para ter sido amado na mesma medida. Se fui irascível quando deveria ter sido manso e amoroso. Se me encontrei em minhas inquietações, sem permitir, muitas vezes, que o outro ficasse inquietado por elas. Se achei que minha palavra fosse a única merecedora de fé. E se, ao ouvir, só recolhesse aquilo que estivesse mais perto dos meus interesses.
     De tudo isso me penitencio.
   Porém não me penitencio se, ao ter sido orgulhoso, pretendesse dar fortaleza ao meu amor, não permitindo que ele ficasse barateado no mercado dos sentimentos vulgares. Não me penitencio se, ao não amar suficientemente, por alguma impossibilidade, estive realmente preocupado no amor maior. Não me penitencio, se passei por irascível, por não conseguir sustentar uma falsa mansidão. Nem se, inquieto, debalde tentei calcar os ímpetos e os furores da minha intratável natureza. Não me penitencio, se ao exigir fé para minha palavra — ainda que só para minha palavra — desejei com isso manter viva e alta a chama do encontro. Nem por ter falado mais do que ouvido, se quis ao mesmo tempo mostrar que estava com isso disposto a ir além do chão entendimento, falando por todos, e sobretudo pelo outro, através de minha palavra. Nem por ter ouvido somente as coisas que me interessassem: se me encontrava do mesmo modo preparado para colher na palavra do outro a dádiva suprema. Para guardá-la em mim.
   Orgulhoso, irascível, contraditório amante, dono, talvez, da única inquietação do universo, mau ouvinte e predicador sem trégua, não me penitencio: porque jamais quis perder a minha humanidade.

Ângelo Monteiro. O ignorado. São Luis: Resistência Cultural, 2012, p.99-100






terça-feira, 19 de agosto de 2014

ADEMIR DA GUIA


Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

João Cabral de Melo Neto. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.357

terça-feira, 5 de agosto de 2014

ADÉLIA DE CASTRO DEFRONTE A UM JAZIGO PERPÉTUO,
NA IGREJA DA GRAÇA 
  

“Aprendi a esperar algumas coisas:
amigos, certos livros, boas chuvas,
a luz dentro do tempo nas manhãs,
o seu corpo sonhando no meu colo,
os versos invisíveis mais à mão,
a passagem das horas descabidas
em que as harpias seculares guincham
meu nome de batismo como cúmplice.
Aos pés da espera, sentam-se as idades
e a paciência é fruto de outra espera,
tendo o silêncio como ouvinte único.
E cai o gota a gota dos segundos
no olho do real com mais doçura
e entendo que esperar sustenta o mundo.”  

Também publicado aqui: http://www.ocampones.com/?p=10240 

domingo, 3 de agosto de 2014

2 NOTURNO


Porque o amor não entende
que tudo quer passar,
nunca, nunca consente
a nada o seu lugar.

Planta presa, de alpendre,
sacudindo no ar
braços impenitentes,
tenazes, em lugar

de aceitar que não prende
nada, o amor quer dar
apaixonadamente
laços à luz solar

e é noite de repente.

Bruno Tolentino. As horas de Katharina. Rio de Janeiro: Recorde, 2010, p.28.

terça-feira, 29 de julho de 2014

HOMERO


Si ahora llegase Homero
a tu jardín, ¿qué harías?
¿Dónde guardas los dátiles, la miel,
la leche o un trozo de puerco?
¿Crees que hablaría contigo de las Pléyades
y podrías darle a leer tus poemas?
¡Oh, padre Homero, siéntate y escucha!
Dime si Ulyses, si Penélope, si la luna roja
de setiembre, si la escarcha o el viento
cierzo, si las vides o la marina espuma,
si la rima o la luna, si la muerte
están bien situadas en mis versos,
sólo esto.


José Jiménez Lozano. El precio, Ed. Renacimiento, 2013, p.45.  

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O VATICÍNIO DA SERPENTE


feitas de rude barro
inúteis são tuas asas
                                 filho do Homem
à Ilha foste condenado
e nada saberás a respeito da Queda

cuidado
querubins sanguinários guarnecem o Paraíso
se muito te aproximares
                                     ao pó volverás
estás imerso em turvas águas
                                   filho do Homem
nada podes divisar
                            senão vultos

aprende o voo-flecha do peixe
e vislumbrarás o eterno


ECLESIASTES II


nadar
desde a madrugada do tempos
nadar
até que o Pescador Implacável
lance a rede sobre o mar


HERMES TRIMEGISTO


as brancas águas do silêncio
dissolveram-me os tímpanos
e meu brado lacerou
o duro tecido dos séculos
restou-me caçar esfinges
por entre miragens no deserto


BLAISE PASCAL


nunca
ninguém
jamais
será escutado

surdo é o grito
dos afogados


***

formiga
afogada
no mar

da lágrima

 ***

xadrez a três

o sopro do vento
derruba reis


Bernardo Souto. Poemas dos livros Teatro de sombras. Recife: Edições Moinhos de Vento, 2011 & Elogio do silêncio. Recife: Ed. do Autor, 2010. 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

TEMPO DE ALIENAÇÃO


Até a palavra pêra pode aqui enganar-nos.
Até a palavra barba pode aqui enganar-nos.
Até a Rua do Sol pode, em rua, enganar-nos.
Somos falhos da coisa: só a falta também
pode enganar-nos. Tudo perde seu sentido
quando pronunciado. 

                                O mundo é irrevogável.

Nauro Machado. Antologia poética. Rio de Janeiro: FBN,Imago, UMC, 1998, p.232

sábado, 12 de julho de 2014

BOLERO DE ANIVERSÁRIO


Quando iniciou toda esta história,
já não consigo me lembrar;
mas dá na mesma: “Quando se ama
ah... sempre temos vinte anos.”

Éramos jovens, muito loucos,
pois nossos gestos denunciavam.
Desobedientes aos preceitos
da prudência, bem..., nos casamos.

(Para que tudo harmonizasse
aquele marco incomparável
numa remota igrejinha e um
mês de julho dos mais paulistas.

Foi de verdade inesquecível:
ao padre e aos convidados
ainda hoje dói na memória
o feroz frio que passamos.)

Nossas reservas de futuro
também estavam bem abaixo
de zero, mas em sonhos éramos
mais milionários que Bill Gates.

Éramos tão ecologistas
e naturistas que já estávamos
chamando-nos papai, mamãe
antes de haver passado um ano.

Ela era linda, eu bem bestinha,
e dois péssimos matemáticos,
assim que um dia, de repente,
um mais um, já éramos quatro.

E logo cinco e seis e nove,
e cada vez maior escândalo.
(E se é verdade, os sentimentos
são os mais revolucionários.)

O povo que é mui generoso
com seus conselhos, sempre dando-nos
ânimo: — “Filho neste mundo!,
apartamentos são tão caros,

como vão pagar os estudos,
e o problema demográfico”,
no final de todas as contas
nós dois estávamos ferrados.

Tinha o povo suas razões:
pois claro está que era insensato
tudo isso, e a bem da verdade
poucas e boas nós passamos;

e houve grunhidos, maldições,
lágrimas, gritos e insultos.
(A vida é o mais parecido
a um dramalhão mexicano).

Mas, apesar de tantas coisas,
atravessamos esses anos,
aqui está hoje aquele amor;
cheio, é certo, de esparadrapo,

mas o mesmo daqueles sonhos
radiantes (algo distraídos);
o mesmo..., contudo, hoje o tempo
multiplica por vinte e quatro.

25-I-97
Miguel d’Ors, Hacia otra luz más pura, Editorial Renacimiento, 2003, pp.63-65


quinta-feira, 10 de julho de 2014

08 – 

Não leve nada, vá só, sem bagagem,
o que ficar, valeu, desapareça
ou não, e vai doer, sem malandragem,
e desadianta não querer, esqueça, 

nada de choro, esboço, uma sondagem
antes de ir, espere o pior, desça
ou suba, assim, sabendo, sem chantagem,
e desconfie dos guias, mas aquiesça,

já que é inútil resistir, herói
ou sábio não serás, e se te derem
tais atributos, é falso, vil lábia,

recuse tudo, o dado se destrói,
nem pense que o corpo é teu, se te ferem,
deves, pois morrer é o dom da cobaia.   
  

09 —


Não é tão sem sentido assim, senão
não continuarias. Olha aí
mais um livro, são quantos já? Pois vão
dizer, e com razão, que o verso ali

— apesar do rigor e da canção —
é beco sem saída e volta sobre si
mesmo, como um guru da negação
numa espiral irrespirável. Li

a estrangulada letra dessa vida,
na qual se escuta o eco alucinado
do seu sonoro círculo suicida.

Apesar da beleza deu enfado.
Exagero? Talvez. A trilha é batida,
mas que gerou um nome e alguns trocados.

A dimensão necessária. Itabuna: Mondrongo, 2014, p.76,77





segunda-feira, 7 de julho de 2014

SONHO RECORRENTE OU SEIS PASSOS PARA UM POEMA SURREALISTA


Assim se sucedeu naquele sonho:
era noite quando uma jovem moça
perguntava-me as horas. Eu lhe disse:
"Não sei não, senhorita, mas é tarde;
não há ninguém na rua, não há nada".
Ela, então, deu um tiro na cabeça.

Era noite de novo; na cabeça
a sensação de estar vivendo um sonho
como se caminhasse sobre o nada.
Chegou-se a mim aquela jovem moça:
"Morri, ressuscitei; é muito tarde.
Mate-me agora mesmo!", ela disse.

Era de noite quando alguém me disse:
"Veja só, estourei minha cabeça
e não posso emendá-la, pois é tarde!",
e tudo se passava como num sonho.
Diante de mim, aquela jovem moça
estava morta; não dizia nada.

De noite outra vez, não se via nada.
Do escuro, soou uma voz que disse:
"Não se esqueça daquela jovem moça
que levou um balaço na cabeça!".
Lembrei-me vagamente de algum sonho,
mas não pude retê-lo. Era tarde.

De noite. Muito escuro. Muito tarde.
Já não me lembro mais de quase nada
e vejo as coisas turvas, feito um sonho.
Só sei que certa vez alguém me disse:
"Cuidado! Não atire na cabeça!".
No chão, jaz o cadáver de uma moça.

Percebo-me: sou uma jovem moça
andando por aí -- tarde, bem tarde.
Estou morta e não tenho mais cabeça;
nas mãos, trago um revólver e mais nada.
"Não há ninguém na rua", alguém me disse.
Não sei se sou real nem sei se sonho.

É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,
algo que alguém me disse muito tarde,
um tiro e só. Mais nada na cabeça.

Emmanuel Santiago. Pavão bizarro. São Paulo: Patuá, 2014, p.67-68
SANTA CLARA


Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.

Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.

Sophia de Mello Breyner Andresen. Poemas escolhidos. São Paulo: Cia das Letras, 2004, p.102

quarta-feira, 18 de junho de 2014


QUARTO TEMA SEM JÚBILO



Uma angústia desnuda entre os pinheiros,
procura a sua pátria: mas que encontra,
sob a lua quebrada, senão névoas?

Há um frio que não dorme nessa espera
de braços arrancados: por que tentam,
mesmo presos ao chão, furar os ares?

Por que, se não são livres, se condenam
a suportar o hálito dos anjos
e, nos nervos, crispada a Voz irmã?

Por que o horizonte empanam mais que a névoa,
se o não podem violar? E se esse frio
lhes murchou as capelas invioladas?

Senão porque uma voz lhes fala em vida,
mesmo quando longínqua? E a voz do encontro,
quem sobre e sob a terra calará?

Se ela, a Irmã, a mais próxima do sangue,
em seu colo de espera traz amarras
que são ainda mais firmes que as do chão?

Por que a angústia desnuda entre os pinheiros
procura a sua pátria, e além da lua,
não vê que a pátria está chorando névoas?

Ângelo Monteiro. Todas as coisas têm língua. Recife: CEPE, 2008, p.299

terça-feira, 10 de junho de 2014

NOSTALGIAS AMAZÓNICAS


Quién fuera un yanomani:
desnudo e inocente, viviría
fuera de calendarios y mentiras,
en paz con los vecinos y las lluvias,
los dioces y mi cuerpo. Mis únicas costumbres
serían los espesos follajes goteantes
traspasados por cantos de colores vivísimos
rápidos como flechas.
No envidiaría, no consumiría,
nadie me robaría. En una estera
tejida con cortezas
fecundaría a mi fiel india bajo
la mirada propicia de los astros.

Pero -nada es perfecto- ninguna de esas cosas
tendría para mí el menor atractivo. 

22-IV-88

Miguel d'Ors. El misterio de la felicidad. Sevilla: Renacimiento, 2009, p.126

domingo, 25 de maio de 2014

O DIABO E A CRIANÇA

      Um dia o Diabo viu uma criança fazendo com o dedo um buraco na 
areia e perguntou-lhe que diabo de coisa estaria fazendo.
      -- Ué! não vês? Estou fazendo com o dedo um buraco na areia! -- espantou-e a criança.
      Pobre Diabo! O seu mal é que ele jamais compreenderá que uma coisa
possa ser feita sem segundas intenções.

Mario Quintana. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p.334.

sábado, 17 de maio de 2014

DÉCIMO PRIMEIRO TEMA SEM JÚBILO



I

Por que dói essa Casa em tua vida,
e ainda que dela fujas, a inquietude
não pára nunca de permanecer?

Será porque da Casa não vislumbras
seu recôndito oásis, ou a perda,
por teus olhos, do fogo da morada?

Ou porque da morada tens a imagem
das suas portas visíveis, e não da alma,
que dança pela Casa e as portas doura?

II

Além da Casa que alicerces sondas,
que escadas te conduzem na vertigem
que o cansaço do perto leva ao longe?

Que existirá no longe que não haja
em tudo que te habita de mais próximo,
onde quer que se instale a tua Casa?

Ou, depois de instalada, se perturba
teu Sonho, aprisionado nas paredes,
tal se alguma prisão nascesse delas?

III

Que urdes além do centro da morada,
que nela não esteja, e ardendo nela:
o fora e o dentro, o próximo e o remoto?

Mas por que dói a Casa, ainda que saibas
que o verme que a corrói é teu invento,
e a fuga que te move não tem asas?


Qual é mais poderoso: o homem ou a Casa,
o homem que se move atrás do mesmo,
ou, sem mover-se, a Casa em sua paz?

Ângelo Monteiro. Todas as coisas têm língua. Recife: CEPE, 2008, p.305