ESCRITOR BAIANO LANÇA DICIONÁRIO
AMOROSO DE SALVADOR
NA LIVRARIA CULTURA
João Filho retrata a cidade em verbetes e
com humor crítico; lançamento acontece neste sábado (27), às 18h
Por Laura Fernandes
Natural
de Bom Jesus da Lapa, o escritor João Filho, 39 anos, retrata a cidade onde
mora desde 2005 (Foto: Betto Jr.)
Como apresentar Salvador para turistas e baianos? A: andar
pelos pontos turísticos da cidade. B: buscar lugares não tão óbvios assim. C:
contar histórias sobre seu povo e casos que têm a capital baiana como cenário.
De A a Z, são inúmeras as possibilidades e o escritor baiano João Filho, 39
anos, encontrou uma curiosa e criativa: o Dicionário Amoroso de Salvador (Casarão
do Verbo/R$ 34/255 páginas).
Verbete
a verbete, o autor costura crônicas sobre pontos turísticos, bairros,
monumentos históricos, artistas e sobre a inconfundível personalidade do
baiano. A obra, que tem lançamento amanhã (27), às 18h, na Livraria Cultura do
Salvador Shopping, integra a Coleção Dicionário Amoroso das Capitais
Brasileiras. Salvador é a
quarta cidade a ser retratada, depois de Recife, Curitiba e Porto Alegre.
Apesar
do livro levar o "amor" no título, engana-se quem pensa que João
retrata a cidade de forma ingênua. Elogios e verdadeiras declarações de amor
andam lado a lado com ironia, humor e crítica. "É 'amoroso' porque abarca
tanto defeitos quanto qualidades. Quem ama consegue ver tudo isso",
acredita o autor, declaradamente influenciado por Nelson Rodrigues (1912-1980).
Para ter uma ideia do retrato feito por João Filho
- a convite do editor da Casarão do Verbo, Rosel Soares - é só passar o olho
pelos 58 verbetes, alguns ilustrados por Caius Marcellus. Entre os listados no
livro, que lembra um guia turístico, estão Armandinho, Abaeté, Ba-Vi,
Candomblé, Caymmi, Elevador Lacerda, Estação da Lapa, Fitinhas do Bonfim,
Igrejas, Jorge Amado, Os Falares, Preguiça e Vendedor de Cafezinho.
Alguns
merecem ser citados e um deles é Brotas. "Brotas não é um bairro. Dizem as
boas línguas que é um país que faz divisa com Salvador. Desse modo, você tem
que estudar o idioma, trocar o câmbio e tirar o passaporte. (...) Apesar dos
geógrafos insistirem, não tem limites, ninguém sabe onde começa ou termina.
(...) Toda ladeira vai dar em Brotas", diz um trecho.
Outro
interessante é Os Falares, que ressalta a linguagem do baiano a partir de uma
cantada: "-Ah, morena, ainda caso com você. - Aooonde! O 'aonde' utilizado
como interjeição negativa é um achado linguístico. Se a linguagem é um reflexo
da realidade, em Salvador, ela é uma farra e será sempre uma licença poética.
Desse jeito, prepare-se ao tentar obter informações geográficas por aqui. (...)
Se você perguntar: onde é que fica tal loja? Vão te responder: lá na antiga
coca-cola".
Já Campo Grande e Praça
Castro Alves ilustram um misto entre denúncia e amor por Salvador. Um trecho do
primeiro pode ser lido na página ao lado, enquanto o segundo diz: "A Praça
não é de ninguém. O poeta - de mão estendida, pede às musas inspiração, ou,
como os mendigos, pede moedas? - está de costas para o mar. Sob a estátua estão
seus ossos. Sua glória é também seu túmulo. (...) A praça é dos pombos. (...)".
Antes
de prosseguir com a matéria, vamos dar só mais um pulo pela Estação da Lapa.
"Eis aqui a muvuca em estado bruto. É a aorta cardíaca da cidade. As
multidões escoando pelos túneis, descendo e subindo as escadarias, desaguando
lá embaixo na Estação da Lapa", começa o verbete, que ressalta que "a
convulsão ordenada das gentes e a zoada de suas vozes é o combustível no motor
do dia (...)".
LOUQUÍSSIMA João
Filho escreveu seu Dicionário Amoroso sentado todos os dias, das 8h às 23h,
entre outubro do ano passado e janeiro deste ano. Depois de rever Salvador, ler
e reler livros sobre ela, o escritor, natural de Bom Jesus da Lapa, fez uma
"lista louquíssima" com tudo o que gostaria de retratar da cidade
onde mora desde 2005. "Tentei jogar o máximo que pudesse dentro do livro.
Até que percebi que era impossível. Não dá pra captar uma cidade toda no livro,
então fui por eliminação e fui pegando as coisas e figuras
representativas", explica o autor.
Ele
não nega sua subjetividade na seleção, mas conta que tentou "ficar
escondido" e deixar a cidade em destaque. Esse é o segundo livro de João
publicado este ano. Além do Dicionário, ele lançou o livro de poemas A dimensão necessária (Mondrongo). O
autor, que começou a escrever com 13 anos, ganhou destaque a partir da estreia
com Encarniçado (Baleia), de 2004.
"Foi o livro que me deu 15 minutos de fama", diz, rindo, ao lembrar o
lançamento feito na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005.
João
confessa que se divertiu muito com o Dicionário Amoroso de Salvador. "Dei
muita risada. Minha relação com Salvador é de amor e ódio.Tentei jogar tudo
isso, de forma bem irônica, sempre com algum teor filosófico e uma brincadeira.
Tem denúncia, aparece um pouco meu rancor, mas também todo o meu amor pela cidade".
Sobre o que ficou de fora, João lembra de uma conversa com o amigo que enumerou
que ele "não colocou isso, isso e isso".
"Assim
cada um vai ter que fazer seu próprio dicionário amoroso", concluiu o
rapaz, após a lista de coisas que não foram contempladas. João achou a ideia
ótima. Letra A: vamos começar?
*VERBETE CAMPO GRANDE
"(...)
Aqui é território de todos e de ninguém: velhos e pipocas, crianças e cigarros,
pedintes e colegiais, putas e funcionários públicos, picolés e moradores de
rua; acolá vai um sacizeiro no rumo do seu vício; não faz muito tempo, perto do
laguinho, um estudante foi deixado sem vida. No centro e dominando a Praça, O
Monumento aos Heróis da Independência, vulgo, monumento ao caboclo,
erguido em 2 de julho de 1895, é obra do escultor Carlo Nicoli. Cabem no Largo
todas as nuances psíquicas do humano, do civismo ao canalhismo, passando pela
candura à selvageria, e a inocência dos meninos e meninas que burlam o tempo no
parquinho. A luz se multiplica nas grandes copas centenárias. Todo o Largo em
sua exuberância espacial, que tanto você quanto eu podemos apenas intuir num
relance imaginativo, é de uma transparência que revigora e tranquiliza. (...)
Os garis combatem, mas a incivilidade avança. Trabalho não cessa. Não há como
varrer as manchas da memória que marcam uma praça. As incontáveis vezes que o
drama, a tragicomédia anônima se desenrolaram no seu piso, o desespero e a
alegria que as nuvens registraram (...)"
*Trechos do livro
(Foto: Evandro Veiga/Arquivo Correio)
Estação Ressalta
que em Salvador "ou chove ou faz sol". "As chuvas de verão pegam
de surpresa muitos desavisados. Ensopam o sujeito em plena praça ou avenida e o
abandonam por lá. Mal passou a chuva, sobe o mormaço. Aí, meu amigo, o também
desavisado parece que vai sufocar, o ar fica grudento (...)"
(Foto: Evandro Veiga/Arquivo Correio)
Fitinhas do Bonfim "Esqueça as desavenças históricas, (...) as
falsas teologias de ateus - e amarre a fita no pulso, a cada nó faça um pedido
(...) e se fie no Alto, ele cumprirá seus votos. No entanto, ali pelo centro
histórico, para sua segurança, não aceite em hipótese alguma as figuras que
abordarem você oferecendo fitinhas do Bonfim (...)"
(Otto Stupakoff/Divulgação)